terça-feira, 12 de outubro de 2021
terça-feira, 7 de setembro de 2021
Questões de Exame: Questões Filosóficas
2ª fase, 2020-21
1. A Lídia e o Joaquim
assistiram a uma encenação de Tito Andrónico, de Shakespeare, que situava a
ação no século XXI. No fim, ambos conversaram e se interrogaram acerca do que
tinham visto nessa noite. Qual das interrogações seguintes não é de natureza
filosófica?
(A)
Será que a beleza, de que ambos falámos a propósito da peça, reside na própria
peça ou é simplesmente a expressão de uma reação nossa ao que vimos?
(B)
Será que, caso sejam usados subsídios do Estado para financiar as companhias de
teatro, mais pessoas desfavorecidas irão ao teatro?
(C)
Será que a representação artística da violência, ainda que alguns a considerem
bela, é moralmente censurável?
(D)
Será correto os encenadores alterarem intencionalmente as peças, em vez de
procurarem representá-las tal como foram concebidas pelos seus autores?
Critérios: https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-Fil714-F2-2021-CC-VT_net.pdf
1.ª fase, 2023-2024
1. Os problemas filosóficos, em princípio, não têm um carácter essencialmente empírico. Selecione a opção que apresenta um problema que não tem um carácter essencialmente empírico.
(A) Será que as mentiras que aumentam o bem-estar de todos os envolvidos são aprovadas socialmente?
(B) Será que a legalização da morte medicamente assistida acabará por levar a um desinvestimento na saúde?
(C) Será que as pessoas que têm crenças e práticas religiosas conseguem enfrentar os infortúnios com mais ânimo?
(D) Será que as crenças acerca do futuro inferidas de observações passadas têm justificação racional?
segunda-feira, 2 de agosto de 2021
O Tempo Linear. A Europa entre Jerusalém e Atenas
A Ruína
ensinou-me assim a meditar:
Que o tempo
chegará e levará o meu amor.
Este
pensamento é como uma morte que não pode escolher
Mas chora
para ter o que teme perder.
Sheakespear,
Soneto 64, 11-14
Qual o sentido
do tempo para a Europa em particular e para o mundo ocidental em geral? Qual a
crença básica do tempo que lhe preside? Será mais Atenas ou Jerusalém? São
estas as questões que procuraremos responder de seguida.
O sentido geral
de uma ideia de Europa pode ser escrutinado pelos inúmeros atos, pensamentos e
acontecimentos que suscitaram ideias escatológicas[1].
A ideia de Fim está de modo permanente inscrito no pensamento europeu pela
nomenclatura da religião abraâmica. A Escatologia cristã tem uma identidade.
Caracteriza-se pela esperança num mundo diferente. Algo novo, algo melhor onde
o tempo é sem tempo, a eternidade. O fim dos tempos cheios de vida já se faz no
presente. É a expressão da Ressureição que deixa marcas eternas no tempo
presente. O cristão vive por antecipação a eternidade. Contudo, a escatologia
europeia tem laivos de catástrofe. Nas janelas dos tempos europeus espreita-se teimosa e simultaneamente o Antigo e Novo Testamento.
A Europa foi
construída pelo sangue. As guerras sucessivas desenharam-na. As guerras
mundiais foram guerras civis europeias. Os balcãs até recentemente o
evidenciaram. Sempre houve uma predilecção suicida da Europa. Ou então uma
tentativa de sobreposição de culturas. O volkgeist hegeliano materializou-se
num weltgeist culturalmente transversal. Seria uma arte concreta, um país
concreto, uma política concreta. Seria o fim, onde o espírito se unificaria e
confundia com o real. No mesmo sentido se predispôs Marx. Nos momentos
revolucionários, a infraestrutura impunha-se, determinando a superestrutura no
sentido de um encontro com o fim da Revolução do Proletariado através das
contradições do capitalismo. Porém, os fins idealizados haviam sido, por vezes,
acompanhados de catástrofe, o pessimismo de Krauss expressa o Apocalipse
presente em vários momentos da história, mas sempre «Now» no sentido de
Kubrick. Os Gulags e os Campos de Concentração permitiram entrever a
catástrofe. Novos conceitos surgem, o Bug do milénio e a expectativa do fim sem
retorno vivido de um modo lúdico. Hoje, a expetativa é vivida no conforto dos
lares como se fossemos invencíveis e o apocalipse não nos afetasse. Eis um
senão. Nos confins da Ásia abriu-se uma fenda na esperança. A epidemia
recorda-nos a gripe que fora espanhola, assim como as medievais pestes. O Bug é
físico e imaterial, o vírus é visível em microscópio, mas também nas ondas
eletromagnéticas e nos algoritmos do nosso conforto. Pontualmente emerge o Antigo
Testamento como forma de nos prevenir da finitude e fragilidade existente na
aparente invencibilidade da evolução imparável da técnica e da ciência. Os incontáveis momentos apocalípticos vividos
sempre serviram para nos reposicionarmos no mundo e, acima de tudo, no tempo.
No tempo consciente existe um eterno presente, como se cada geração
correspondesse ou um infortúnio ou a uma fortuna. Pensemos atualmente e
verificamos que a Europa vive esse presente que nunca foi tão afortunado. Como
entender os reveses como a crise pandémica? Como justificar a ação?
Quando a
realidade se impõe ao sono prazeroso, o medo reposiciona-nos no tempo e no
espaço, serve como recurso pedagógico no sentido de tomamos consciência da
finitude e da imensa fragilidade. O que faz a nossa civilização? Refugia-se na
Atenas racional ou nas crenças milenaristas. Relativamente a estas últimas,
Agostinho desmitificou-os[2],
por isso o apocalípse fora reinterpretado como momentum, ocasião para reflectirmos sobre a história. Eis a
interpretação do tempo de Jerusalém e de Sinai. A Seta do Tempo vê o sentido
historicista da vida humana, do tempo cheio de propósito. A dialética da
história é subsidiária do cristianismo e judaísmo. É de difícil execução criar
um hiato entre a definição da humanidade no diálogo com o transcendente e a
criação da modernidade. Os filósofos da suspeita, com exceção de Nietzshe,
beberam da ideia messiânica da história, como bem se vislumbra em Marx ou
Comte, e da queda de Adão inscrita no complexo de Édipo freudiano[3].
O Cristianismo
surge como repositório da luta que o judaísmo encetou com a tradição helénica. Relembrando
Agostinho, existem três tempos, a saber, lembrança
presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança
presente das coisas futuras[4].
Por isso, no que ao tempo diz respeito, somos mais Jerusalém e menos Atenas, e
mesmo aí somos mais cristãos que judeus. O Cristianismo bebe do judaísmo, mas
foi além dele, correspondendo à necessidade de popularizar e universalizar a
ideia de criação absoluta do mundo[5],
onde todos e não somente os eleitos tivessem o seu momento salvífico e eterno. No
embate com o período helénico, os cristãos não podiam comungar de uma visão
cíclica do cosmos. A principal dificuldade prendia-se com a ideia de criação e
com ela a ideia de fim, assim como a plena necessidade do cristianismo fundar o
livre arbítrio como essência humana. O Eterno Retorno, destruiria a noção de
pecado e de redenção, com a consequente noção de sanção divina, de sacrifício e
ressurreição. Seria inconciliável a eterna repetição de todas as situações com
a datação bíblica e os respectivos acontecimentos. Moisés só por uma vez guiou
o povo prometido, só por uma ocasião Judas traiu Jesus[6].
Com o aparte do
sentido pagão do Eterno Retorno recuperado por Nietzsche, um epifenómeno na
imensidão evolucionista, a Europa fez-se com a ideia de Haeckel, Spencer e
Darwin. A emergência da ideia de tempo
linear e a evolução intelectual que impôs sustentaram a ciência moderna e a sua
promessa de melhor vida na terra[7].
O evolucionismo encontrou terreno fértil na ciência, filosofia e arte. O
optimismo foi o protagonista na Exposição Universal de novecentos. O ferro, a
par das recentes invenções tecnológicas, penetrava nos espíritos mais afoitos
como Marinetti ou Almada. A reinvenção da língua no acompanhamento da
velocidade e o desmantelamento da tradicional sintaxe impunha-se em textos como
a Engomadeira, mas também na revista Orpheu, com o epíteto de Triunfal,
Pessoa expôs a sua Ode [8].
Os milénios são meros momentos, numerologias à parte, mas que promovem catarses
e tomadas de consciência do progresso.
Como já havíamos
afirmado, o Cristianismo e o judaísmo inventaram a seta do tempo, a ideia de
linearidade, assim a ideia de começo e de fim. É inquestionável a ação das
grandes religiões na definição do tempo, e ainda mais no tempo histórico. As
manifestações humanas não existem singularmente, mas manifestam-se
coletivamente. A própria memória se faz por filtros e a mundividência judaica e
cristã funcionaram como filtros. Decidiam o que se deve lembrar e o que se deve
esquecer. E o que se deve lembrar para a religião cristã é a redenção do fim
que ele mesmo é um começo. Independentemente de se ser crente ou não, é inolvidável
a influência que o cristianismo imprimiu na visão do mundo e do tempo. Aliás, o
mundo é tempo e o tempo é o mundo.
Mafra, 31/7/2021
António Daniel
Fernandes Pereira da Costa
[1] Ver
George Steiner, A Ideia de Europa, Gradiva,
página 42.
[2] Umberto
Eco, O Fim dos Tempos, Terramar, pág.
209.
[3] George
Steiner, op cit, página 40.
[4] Santo
Agostinho, Confissões, Livraria do
Postulado da Imprensa, 11º edição, página 309.
[5] Raul
Proença, O Eterno Retorno, Biblioteca
Nacional, Lisboa, 1987, pág.177.
[6] Idem,
página 180.
[7] Peter
Coveney, Roger Highfield, A Seta do
Tempo, trad. Maria Pinhão, Forum Ciência, Publicações Europa-América,
página 26.
[8] Fernando
Pessoa, «Ode Triunfal», in Orpheu,
edição facsimilada, Contexto,1989, pág. 76.
sexta-feira, 23 de julho de 2021
Série Textos de alunos: O Prolongamento da Vida
Numa época
onde as novidades tecnológicas prometem aumentar, e já em alguns casos aumentam
significativamente, a longevidade humana, torna-se fundamental pensar nas suas
consequências. Assim, colocam-se não só questões relacionadas com a definição
de padrões de qualidade da vida prolongada até ao extremo, como também
dificuldades no âmbito da governação e sustentabilidade sócio-económica de
sociedades mais envelhecidas. Devemos ainda acrescentar as consequências do
acesso desigual aos produtos biotecnológicos destinados a aumentar a
longevidade humana. Vislumbra-se os indivíduos a fazer as suas próprias opções no
que à vida diz respeito, promovendo os seus corpos numa corrida contra o tempo.
Por este motivo, uma questão se apresenta:
Será o
prolongamento da vida intrinsecamente bom?
Podemos
designar o prolongamento da vida de duas formas. Por um lado poder-se-á
entender como uma forma de prolongar a partir de uma existência em si frágil;
por outro lado uma forma de alargar a esperança de vida em virtude do avanço
tecnológico e científico. Estas duas situações são hoje em dia existentes. A
resposta à segunda pergunta parece ser inevitável. É óbvio que todos gostam de
prolongar a sua vida. Há em todos os sectores da sociedade uma inclinação
natural para a necessidade de prolongar a vida. A morte é o desconhecido pelo
que resulta em nós uma atitude de a não aceitar. Fica pois claro o nosso
primeiro argumento:
Se todo o
ser humano procura viver, então a vida é boa. Se a vida é boa, deve-se
prolongá-la. Logo, se o ser humano procura viver, então deve-se prolongar a
vida.
Desde logo,
a primeira premissa não parece muito sustentável. O facto de todo o ser humano
procurar viver não implica que a vida seja boa. Podemos dar inúmeros exemplos
de pessoas que pretenderam viver mas em condições não muito adequadas. O mero
desejo de viver justifica o prolongamento da vida? Penso que não, se partirmos
do pressuposto que prolongar a vida significa aumentar a duração do corpo a
partir das inovações biotecnológicas. Ora, este mero aumento sem uma
correlativa preocupação pela qualidade de vida poderá trazer-nos questões
particularmente inquietantes. Valerá a pena viver com um corpo saudável e
simultaneamente com uma degradação contínua das capacidades mentais? Sem estas
últimas, creio, não estarem reunidas as condições de uma vida digna,
tornando-se imperativo o repensar sobre a eutanásia. Contudo, na eutanásia
ativa coloca-se a questão sobre a possibilidade da pessoas terem a capacidade
de decidir sobre a sua morte. Portanto, o que adianta prolongar a vida sem a
adequada saúde mental? Não me parece questionável afirmar que uma vida sem a
clarividência da consciência não merece ser vivida, quer para o paciente, quer
para as pessoas que com ele privam.
Estamos perante outra questão: Só a
vida digna merece ser vivida?
O cerne deste problema encontra-se na
noção de dignidade, conceito que mereceu da parte de muitos uma especial
atenção. A ideia comum a todos que reflectiram sobre este conceito remete-nos
para a ideia de racionalidade. Só as pessoas possuidoras desta faculdade
poderão manter a vida porque ela é digna de, assim, ser vivida. Ora, não é
necessário grande reflexão para colocarmos em causa este pressuposto. Uma
criança não possui a racionalidade de um adulto, mas merece viver e a sua vida
é digna, assim como uma qualquer pessoa que tenha nascido ou adquirido
problemas de capacidade racional merece viver e a sua vida também é digna.
Contudo, parece-nos que a pertinência desta reflexão está no prolongamento
artificial da vida humana. Aqui talvez resida o foco deste ensaio.
De imediato deve colocar-se a dúvida
acerca do que é artificial ou natural. Não será a vida humana naturalmente
artificial?
Praticamente que todas as dimensões
da vida são artificiais. O aumento da esperança de vida é resultado da evolução
do conhecimento científico, dos meios de diagnóstico e de intervenção. Se
acrescentarmos o desenvolvimento das células estaminais é possível que o prolongamento
médio da vida para lá dos cem anos seja perfeitamente alcançável nos próximos
anos. A existência humana resume-se à tentativa de se distinguir da natureza
levando-a a construir uma realidade puramente humana. Assim sendo, pensarmos no
prolongamento da vida não só é expectável como inevitável. Portanto, em vez de
pensarmos sobre se é correto prolongar a vida a pergunta urgente é que
consequências haverá desta inevitabilidade?
Devemos distinguir qualidade de vida e
a sua duração. A duração implica qualidade de vida, considerando esta a posse
de todas as capacidades que confiram ao ser humano um existência de conforto,
de reflexão e de segurança e também de prazer. Convenhamos que o prolongamento
da vida sem este pressuposto não será de todo conveniente, quer de um ponto de
vista pessoal, quer social. As mudanças demográficas nas nossas sociedades
crescentemente constituídas por pessoas envelhecidas colocarão em causa a
sustentabilidade dos sistemas de segurança social assim como as diversas formas
de governabilidade e substituição geracional, já para não esquecermos as
alterações nas formas tradicionais de família.
Se estas
últimas perplexidades necessitam de uma estratégia urgente, porquanto são
inevitáveis, já a relação entre a qualidade de vida e a duração, será de
pertinente reflexão: Será o prolongamento da vida um direito absoluto? Isto é,
será prolongamento da vida um direito incondicional, independentemente das
circunstâncias de cada um? A nossa resposta é claramente não. O nosso argumento
pode ser sintetizado de seguinte forma: Praticamente todos os humanos têm
direito ao prolongamento de vida. O prolongamento da vida justifica-se em
condições em que não existe uma situação de sofrimento atroz e de
irreversibilidade. Logo, o prolongamento da vida não é um direito absoluto,
nomeadamente quando nem sempre é do interesse do paciente prolongar a vida.
Pedro Daniel Lourenço Pereira
terça-feira, 20 de julho de 2021
Série Textos de alunos: Para uma Defesa da Liberdade de Expressão
O objetivo de qualquer sociedade
evoluída, civilizada e de mente aberta é garantir a felicidade das pessoas que
dela fazem parte. E não existe nada mais importante para a felicidade de alguém
que a liberdade. Muitas vezes para sermos felizes é mais importante podermos
fazer algo do que fazermos algo. Eu, uma pessoa que adora ler livros no seu
tempo livre, detesto quando sou obrigado a fazê-lo no âmbito da escola, mesmo
que o livro que sou forçado a ler seja aquele que eu iria ler no meu tempo
livre, pois a felicidade que o meu livre arbítrio me proporciona sobrepõe-se à
felicidade que a leitura de qualquer livro me possa dar. Assim, a liberdade
está diretamente relacionada com a felicidade, e por isso mesmo é um pilar
fundamental das culturas mais evoluídas.
Sabendo que a liberdade pode tomar
várias formas diferentes, neste texto vou defender um tipo específico de
liberdade, a de expressão. Por vários motivos, que passo a explicar a seguir, a
liberdade de expressão deve ser (quase) total. Introduzo a palavra
"quase" entre parênteses pois existe uma exceção muito específica
para esta liberdade, que acontece quando a segurança física de uma ou várias
pessoas é colocada em risco. Se me encontrar no meio duma multidão, por
exemplo, devo ser proibido de gritar "BOMBA" ou "INCÊNDIO",
pois corro o risco de lançar o pânico e possivelmente causar feridos. Mas
tirando este tipo de exceções muito específicas, a liberdade de expressão deve
ser total.
Devo começar por afirmar que a
liberdade de expressão é condição necessária (mas não suficiente, obviamente)
para que exista democracia. Se fizermos parte de um país que utilize as
eleições como método de eleger os seus líderes ou representantes mas não houver
liberdade para que cada pessoa defenda as suas ideias e opiniões, então não
estamos perante uma democracia, pois esta presume que quem tem o poder é o povo
(demos – palavra para “povo” em latim
e kratos – palavra para “poder/forma
de governo” em latim juntaram-se para formar a palavra demokratia – palavra para “democracia” em latim), e se uma pessoa é
influenciada e manipulada através da opressão e da censura a votar em alguém, sem
ter acesso a ideias e opiniões diferentes e a críticas relativamente à forma de
governação vigente, deixa de poder tomar uma decisão livre e informada e por
isso deixa de ter qualquer poder na escolha dos seus líderes ou representantes,
logo não se pode afirmar que viva numa democracia. E não será polémico afirmar
que qualquer país que, neste momento, não seja gerido de forma democrática,
deverá ser considerado sub-desenvolvido, injusto e imoral.
Passando da democracia para uma
perspetiva mais geral, é importante perceber que, no fim, quem sai sempre
prejudicado com as limitações da liberdade de expressão são os menos poderosos,
mesmo que estas limitações tenham o objetivo de os proteger. Olhemos para o
bullying, um problema muito atual e relevante. Há quem defenda que este deve
ser combatido com a censura de palavras ou expressões consideradas
desrespeitosas, violentas, agressivas... Mas quem é que iria beneficiar com
isso? Quem pratica o bullying, e que, neste exemplo, se encontra numa posição
de poder, iria, provavelmente, arranjar soluções mais criativas e disfarçadas
de "torturar" as suas vítimas. Já as vítimas, que continuariam a
sofrer com o bullying, teriam mais medo e mais vergonha em pedir ajuda, por se
encontrarem num "regime" opressivo e de censura. Quem tem mais poder
tem sempre vantagem a contornar a censura enquanto alguém com menos poder terá
sempre desvantagem, pois a possibilidade das pessoas menos poderosas se
exprimirem livremente é uma das maiores armas que estas mesmas pessoas têm para
combater as injustiças que passam diariamente.
Para além disto tudo, ainda existe
outro problema com as limitações à liberdade de expressão, que é o de estas,
tal como as limitações a qualquer outra liberdade, funcionarem como uma bola de
neve.
A seguir a «pandemia» e «confinamento»,
a expressão que mais deve ter entrado no vocabulário das pessoas no último ano
foi cancel culture (cultura do
cancelamento). Esta cultura começou como uma forma de justiça social e de luta
contra o poder através das redes sociais, como o Me Too, que expôs uma série de pessoas famosas que atuavam como
agressores sexuais, mas que nunca eram apanhados devido à rede de influências e
poder que estava instalada. Aqui, e como é possível observar, a liberdade de
expressão teve um efeito positivo na sociedade e funcionou como uma forma de
dar poder aos menos poderosos. Só que esta cultura, que no início celebrava a
liberdade de expressão, começou a tentar limitá-la. Inicialmente, algumas
pessoas podem considerar que estas limitações tiveram efeitos positivos, pois
permitiram retirar protagonismo e limitar a expressão de pessoas que proferiam
afirmações racistas, homofóbicas, etc.. Mas como seria de esperar, mesmo que
por bons motivos, as limitações à liberdade de expressão funcionam como uma
bola de neve e não tardou muito para se começar a tentar cancelar coisas como opiniões
políticas, músicas, piadas e basicamente tudo o que saísse do que esta cultura considerasse
aceitável. Muitos humoristas viram-se impedidos de realizar o seu trabalho pois
tiveram as suas redes sociais bloqueadas, músicos viram espetáculos e concertos
cancelados porque escreveram “tweets controversos” e houve, inclusivamente,
restaurantes que foram à falência depois de publicações que fizeram nas redes
sociais que foram consideradas ofensivas e que desencadearam uma onda de
críticas falsas e negativas nos seus sites que afastaram os clientes,
provocando o desemprego de várias pessoas, tudo por causa duma publicação. A censura
é uma bola de neve que vai sempre "engolir" os menos poderosos.
Então devemos tolerar afirmações
que vão contra os direitos humanos ou insultos e ofensas gratuitas a outras
pessoas? Sim e não. Sim, porque não devemos limitar a liberdade de expressão
destas pessoas, visto que não sabemos as repercussões que essas limitações
possam ter, repercussões essas que, historicamente, têm tendência a prejudicar
os mais fracos, mesmo que a intenção inicial dessas limitações seja
defendê-los. E não, não devemos deixar passar em branco esse tipo de
afirmações, pois a liberdade de expressão total funciona para os dois lados, e
com ela podemos tentar corrigir, avisar ou chamar a atenção para o facto desses
comportamentos não serem corretos.
Numa utopia em que toda a gente
respeitasse os direitos e liberdades das outras pessoas, a questão da liberdade
de expressão não se colocaria, pois ninguém sentiria a necessidade de silenciar
o outro, mas como não vivemos numa utopia, é mandatório tentar compreender qual
é a solução para este problema que levanta menos injustiças e que nos permite
caminhar para um mundo mais evoluído. E pelas razões que acabei de apresentar,
a solução deve passar sempre pelo aumento da liberdade, e não pela sua
limitação.
Francisco Macieira, Nº11, 11D
Série textos de alunos: Democracia ou Epistocracia?
Em primeiro lugar, há que ter em conta e saber distinguir com clareza as noções de democracia e de epistocracia. Democracia, do grego demos (povo) e kratos (poder) implica, atualmente, que todos os cidadãos de um determinado estado participam de forma igual na eleição de representantes através do sufrágio universal. A democracia abrange todas as condições socioeconómicas dos eleitores, permitindo uma participação ativa de todos os cidadãos na política. Por sua vez, a epistocracia, embora seja um conceito recente (concebido em 2003) provém do grego episteme (conhecimento científico ou verdadeiro) e kratos (poder). Num regime epistocrático, apenas os mais esclarecidos, educados e sábios exercem o poder de votar e ser eleitos.
Hoje em dia, a democracia é encarada como o regime político mais
desenvolvido devido ao seu caráter inclusivo e diverso. Assim sendo, é um regime claramente superior e mais
eficaz do que a epistocracia. Isto é, em termos de probabilidade matemática e exata, permitir o
voto e a candidatura a um grupo mais abrangente de pessoas (neste caso a todas
as pessoas), regimes democráticos são capazes de selecionar candidatos mais
aptos a governar, em resultado de se partir de uma maior amostra destes. Para
justificar esta afirmação, considera-se as seguintes definições e expressões
que definem o cálculo de determinada probabilidade:
- Probabilidade de um acontecimento – é um número que
mede a possibilidade de esse acontecimento se realizar;
- A probabilidade P(A) de um acontecimento A, é a soma
das probabilidades dos acontecimentos elementares que compõem A.
(In “Probabilidades e Eliminatória”, por Maria Eugénia Graça Martins, Cecília Monteiro, José Paulo Viana e Maria Antónia Amaral Turkman)
Ou seja, quanto mais acontecimentos ocorrem, uma maior probabilidade de certa coisa acontecer é registada.
Além disso, um regime democrático é, em comparação com a epistocracia, o único capaz de resultar na prática. Um exemplo disso será a necessidade que os epistocratas têm de fazer a seleção dos eleitores. Limitar o voto a pessoas que tivessem pelo menos o ensino superior em certas áreas ou um mestrado nessas mesmas seria um erro, já que é bastante comum pessoas com esse grau de educação não compreenderem política básica e não conhecerem os programas eleitorais. Pela lógica epistocrática, essas pessoas não estariam aptas a votar. Sendo assim, a solução seria realizar testes específicos para determinar quem tem direito ao voto e à candidatura, mas isso seria inexequível e dispendioso, tanto de fundos monetários como de tempo.
Por outro lado, a epistocracia iria eventualmente caminhar para uma ditadura e para um constrangimento da liberdade de expressão. Não é possível garantir que não haja revoltas contra um regime que oprime ativamente indivíduos pertencentes a certos grupos sociais, por não os deixar votar e eleger os representantes que melhor se enquadram na resolução dos seus problemas enquanto membro desse grupo, seja ele étnico, social ou económico.
Um exemplo dessa revolta mencionada anteriormente é a existência de partidos políticos ou organizações, normalmente clandestinas, que lutam pela democracia em regimes de partido único.
Um dos argumentos epistocráticos mais fortes é o de que uma pessoa “ignorante” é uma espécie de hooligan político (apoiantes fervorosos que normalmente desconhecem os programas partidários mas que, independentemente do que defenda o seu partido, o seu voto continua a ser leal a este) quando se trata do momento de votar. Já o epistocrata é, supostamente, uma pessoa ponderada que vota com base na razão. O eleitor democrático vota, segundo um epistocrata, por emoção e isso é aparentemente uma coisa menos favorável. No entanto, nenhum ser humano pode ser puramente racional ou emocional e o voto emocional não é necessariamente mau, uma vez que a emoção também é equacionada no processo de voto.
Tendo isto em conta, é a democracia quem dá lugar à resolução de problemas de certos grupos sociais, minorias, etc. Um epistocrata defende que a pessoa menos bem educada (que não merece o direito de votar) pode, do alto da sua ignorância, pôr em causa certas minorias ou grupos sociais ou étnicos. No entanto, é mais provável que a segurança e as condições de vida de certos grupos sejam postas em causa através do voto epistocrático. Um indivíduo de um grupo social que tenha, seja pela sua raça, etnia ou cultura, uma desvantagem à partida no sistema educativo e de emprego, tem menos probabilidade de obter o direito ao voto do que outro de um grupo ou classe social com uma vantagem sobre os demais. Com efeito, pessoas dos grupos sociais discriminados não iriam ter direito ao voto, sendo ainda mais marginalizadas e controladas por eleitores que só vivem a sua realidade e que, por mais educados que sejam, acabariam por tomar decisões egoístas e desinformadas que afetariam essas minorias, o que raramente aconteceria se o direto de voto fosse universal.
Portanto, pode concluir-se que a democracia é mais eficaz que a epistocracia em
qualquer contexto político.
Beatriz Sobreira Guia, nº3 11ºD
quarta-feira, 2 de junho de 2021
Ideias Gerais de Proudhom
domingo, 31 de janeiro de 2021
O Processo de Escolha das Teorias Científicas.
I Introdução
Até há bem pouco
tempo a Física mantinha o seu umbilical cordão com a Filosofia, pelo menos em
termos de designação. A Filosofia Natural pressupunha essa natureza convergente
do conhecimento, o seu carácter aglutinador e total. Contudo, depressa a ciência
dita natural se distanciou, granjeando atenções, legítimas, diga-se, e se
autopromoveu como conhecimento por excelência, permitindo o surgimento de
espaços para as ciências sociais e humanas, eufemismos e apeadeiros
confortáveis para a consciência dos académicos. Perante este cenário, qual o
papel da filosofia? Num recente número de uma revista norte-americana,
Scientific Americain (https://www.scientificamerican.com/)
foi publicado um artigo da autoria de Carlo Rovelli (https://www.publico.pt/2019/11/23/ciencia/entrevista/carlo-rovelli-compreender-curvatura-espaco-tempo-quase-trip-psicadelica-1894617)
cuja leitura nos remete para uma necessária simbiose entre Filosofia e Física,
«Philosophy needs Physic, and Physic needs Philosophy». O autor, depois de uma
breve incursão à filosofia grega, sugere-nos a dependência entre a Física e a
Filosofia a partir dos primórdios da Física Quântica, afirmando que os
filósofos habitualmente possuem ferramentas e habilidades (Skills) que a Física
necessita e que os Físicos habitualmente não exercitam: análise conceptual,
habilidade em encontrar algumas lacunas nos argumentos e procurar explicações
conceptuais alternativas. Creio que o caminho poderá ser por aí para não se
enfatizar os últimos desdéns votados à filosofia por Steven Weinberg, Stephen
Hawking, entre outros.
Uma das clarificações
e análises que o rigor filosófico pode e deve estar atento é no que diz respeito à
escolha das teorias científicas, que Kuhn, Lakatos e Popper tiveram a
oportunidade de desenvolver. Depois da apresentação das suas ideias, procurarei
pontos de confronto e/ou convergência para, finalmente, encontrar um «porto de
abrigo» que irá ao encontro da ideia de que a escolha ainda é sugerida por
momentos de predominância de uma cientificidade, objectividade e racionalidade,
apesar de reconhecer que esta última característica não possui a mesma
conotação iluminista de universalidade.
2.
A luta Paradigmática e a resolução de Enigmas.
Na sua Obra A Estrutura das Revoluções Científicas[1],
Kuhn diz ao que vem. Encetou um programa de construção histórica da ciência, um
dos caminhos possíveis para alterar o modo como a ciência e os próprios
cientistas se veem a si mesmos. Do percurso histórico, Kuhn vislumbrou a caraterística
fundamental da ciência como processo de resolução de enigmas. Quando nos
sujeitamos a resolver um enigma sabemos de antemão que tem solução. O mesmo
acontece com a ciência. Perante um facto que surge no horizonte da explicação
científica, considera-se que o peso heurístico do paradigma dominante bastará
para assegurar a concretização do processo de investigação. No capítulo II da
obra supracitada[2], são
sugeridos os três focos para a investigação científica normal, que passa pela determinação
do facto científico, dos casos significativos num determinado âmbito
paradigmático e respectiva articulação da teoria, garantindo o rigor e a
precisão. São estes os motivos que fazem da Ciência Normal, conceito primordial
da epistemologia de Kuhn, um exercício conservador para a manutenção a todo o
custo do Paradigma que a sustenta. Tal pode ser provado na receptividade que as
teorias evolucionistas de Darwin tiveram na academia londrina. Os períodos da
Ciência Normal – que consistem na institucionalização do Paradigma – regem-se
pela ideia de que partimos sempre com a expectativa de resolução de um qualquer
facto. Por esse motivo, a Ciência Normal testa a engenhosidade dos cientistas,
determina as leis, conceitos e teorias e os Instrumentos e métodos de uso. Contudo,
uma questão pode surgir, o que acontece quando surge um qualquer problema que
não seja imediatamente explicado pelo paradigma dominante?
A palavra
descoberta sugere que houve um momento único e uma única pessoa que a processou.
Ora, Kuhn diz que a descoberta é um processo moroso. A descoberta oxigénio[3]
tanto se ficou a dever a Priestley como a Lavoisier ou até a todos aqueles que
contribuíram para a descoberta. Além disso, a própria constatação da existência
de oxigénio não foi rapidamente aceite. Durante o séc. XVIII havia a ideia
paradigmática de que todas as substâncias que se queimam têm um elemento comum:
o flogisto. Foi somente com Lavoisier que se concluiu que o fenómeno da
combustão deveria ser interpretado ao contrário do que ensinava a teoria
flogística: em lugar de perder flogisto, elemento imaginário que não
deveria existir, os corpos quando se queimam, ou se oxidam, absorvem oxigénio.
A persistência da anomalia e a sua inconveniente presença, tornam a crise
paradigmática em algo presente e incómoda. Como explicar as constatações
darwinianas dos tentilhões à luz do criacionismo? De que modo refutar a
observações de galilaicas de Vénus e de todo o movimento científico seu
contemporâneo tendo como pano de fundo o geocentrismo? Num enquadramento
diacrónico, é-nos fácil ridicularizar a tendências daqueles que não aceitam de
imediato as novas constatações, mas Kuhn mostra que o abandono de um Paradigma
é moroso e exige que um novo Paradigma possa surgir no horizonte. Aqui uma
pergunta se impõe: que características deve o Paradigma emergente possuir para
que seja aceite?
É comum
aferirmos a ciência como uma actividade objectiva, considerando-a livre de
qualquer influência valorativa ou subjectiva. Porém, para Kuhn «quando os cientistas têm de escolher entre
teorias rivais, dois homens comprometidos completamente com a mesma lista de
critérios para escolha podem, contudo, chegar a conclusões diferentes.»[4]. Tal
constatação sugere que existem outros critérios para além da objetividade, como
o critério da exactidão, da consistência, do longo alcance, da simplicidade, da
fecundidade. Acrescente-se a ideia de Kuhn segundo a qual o surgimento de uma
nova teoria tipicamente só surge após um fracasso na actividade normal de
resolução de problemas. Uma teoria ser admiravelmente
bem sucedida não significa ser totalmente bem sucedida. Existem factores
internos, como a insegurança dos cientistas, o fracasso do paradigma em
resolver os seus próprios problemas e factores externos que passam pelas pressões
socioculturais e religiosas, que levam a supor que o surgimento de uma nova
teoria necessita de larga aceitabilidade da comunidade científica que, por sua
vez, não é totalmente neutra ao seu contexto sócio-cultural.
A crise do
paradigma, a aplicação da ciência extraordinária como forma de resposta à
persistente anomalia pode originar a revolução científica que, tal como o nome
indica, promove uma mudança radical no espectro científico, evidenciando a
característica de incomensurabilidade paradigmática. Que significa dizer que os
paradigmas são incomensuráveis? Que os defensores de um e outro estão em
conflito sobre os próprios problemas que se trata de solucionar, assim como
sobre as soluções aceitáveis e que diferentes paradigmas possuem diferentes
usos de noções e conceitos.
A tese de Kuhn relativamente às escolhas das
teorias é de difícil refutação. O seu quadro teórico baseia-se em pressupostos
históricos como se constata nos inúmeros exemplos apresentados nas suas obras.
A partir daí elabora o conceito de paradigma que está esboçado de tal forma que
possui múltiplas caracterizações, desde matriz lógica, até metafísica, passando
por pressupostos sociológicos e axiológicos. De tão englobante conceito facilmente
pode cair em algo indefinível. Contudo, há considerações pertinentes em Kuhn.
Sabemos que durante o século XIX a ideia premente transversal a todo o saber
era a ideia de evolução e também de progresso. Na ciência, quase em simultâneo
com o Darwinismo, surgiu a ideia de evolução de Spencer, Haeckel e outros. Do
mesmo modo, na filosofia desde o idealismo alemão assim como no positivismo de
Comte e Litré, o pressuposto de evolução e progresso estão presentes. De igual forma,
podemos asseverar que o contexto e necessidades tecnológicas promoveram a
Relatividade de Einstein. Parece, assim, indesmentível que há um ambiente que
ajuda a promover uma ideia de ciência, de saber, de conhecimento e que os forma
de modo indelével. Contudo, perguntar-se-á se tal legitima a ideia de
relativismo e se os critérios de escolha das teorias são de facto tão
«sociológicos» e até psicológicos. Kuhn parece pressupor que mais importante
que as demonstrações de pureza técnica é a capacidade persuasiva dos cientistas.
Parece evidente que a substituição de uma perspetiva geocêntrica por uma
heliocêntrica em pleno século XVI teve de muito sociológico. As teorias quando
surgem são facilmente dominadas por interesses vários que as adotam. Do mesmo
modo, a resistência da ciência do século XIX relativamente às ideias
evolucionistas pode ser facilmente identificada na assunção religiosa
dominante. Atualmente proceder-se-á deste modo? Penso que não. Podem surgir
contextos económicos e outros enquadramentos que promovam certas descobertas
científicas, como são vários os exemplos, desde a investigação aeronáutica até
ao surgimento de tecnologias de informação. Contudo, o processo científico tem
um plano teórico que não é despiciendo, que se processa quase num patamar metafísico. Os físicos teóricos conceptualizam
num arranjo abstracto de quase alheamento da realidade. O Bosão de Higgs
resultou de um modelo meramente teórico elaborado em 1960, resultando na sua
comprovação 50 anos depois. O que pretendo afirmar é que existe uma diferença
entre a ciência e a sua aplicação, a técnica. À Física Quântica se deve muitas
aplicações, entre as quais modernas formas de comunicação, porém aquando da sua
conceptualização tal desiderato não estaria a ser pensado.
Popper num
artigo intitulado «A Ciência Normal e seus perigos» acrescenta mais algumas
críticas de modo um pouco irónico, chegando a afirmar que o cientista «normal»
é alguém de quem devemos ter pena[5]
em virtude do seu espírito dogmático e a aversão à novidade. Talvez esta
ciência exista nos corredores de universidades, nas consciências de certos
cientistas ansiosos por ganhar respeitabilidade e atenção dos seus superiores.
Mas a actividade científica é uma constante procura e caracteriza-se por uma
incerteza que os modelos e padrões conservadores dificilmente conseguem
acompanhar.
3.
O critério falsificacionista de Popper.
Nos antípodas de
Kuhn encontramos este pensador austríaco. E a diferença começa logo na forma
como Popper elabora a sua epistemologia, procurando aquilo que a ciência deve
ser. Numa resposta ao Problema da Indução de Hume, Popper afirma que as teorias
científicas devem proceder de um modelo hipotético-dedutivo. O resultado desta
ideia será a de que não interessa como se chega à teoria, mas como se sai. Por
este motivo, Popper considera mais pertinente designar a teoria de conjectura,
querendo promover a ideia da permanente testabilidade da ciência. O seu modelo
lógico será, portanto, o Modus Tollens. Consequentemente, uma boa teoria
científica será aquela que mais predisposta estará a ser refutada. A
importância de uma conjectura não está nas soluções que encontra mas nos problemas
que suscita. Popper foi «levado,
portanto, por considerações puramente lógicas, a substituir a teoria
psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar
passivamente que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de
modo ativo impor regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e
interpretá-las em termos de leis que inventamos. Sem nos determos em premissas,
damos um salto para chegar a conclusões - que podemos precisar pôr de lado,
caso as observações não as corroborem. »[6] A
cada teoria científica corresponde um processo de refutações constantes e o
respectivo processo evolutivo, que também é de progressão, desenvolve-se de
acordo com o seguinte esquema:
P1 ® TE ® EE ® P2, sendo P1 o problema
de partida, TE a teoria experimental, EE significa o processo de eliminação de
erros e P2 representa os problemas finais – os
que emergem das discussões e ensaios[7].
Resumindo, o esquema mostra-nos que a ciência nasce de problemas e acaba em
problemas. Aliás, Popper acrescenta que todo o conhecimento se processa desta
forma, seja ele objectivo ou subjectivo, prático ou teórico. Mas perceber como
se deve processar a transição entre teorias exige que seja necessário
esclarecer o que faz uma teoria melhor do que outra.
O que faz uma
teoria melhor do que outra?
O
falsificacionismo é o elemento apresentado por Popper como critério de
demarcação entre ciência e não ciência. Deste modo, uma teoria será melhor do
que a sua oposta se for mais falsificável, adjetivo que se relaciona com o
conteúdo empírico, isto é, quanto mais uma teoria disser sobre a realidade
(teoria da verdade como correspondência), mais falsificável ela é. Antes de
apresentarmos o recurso utilizado por Popper para sustentar esta sua ideia,
convém referir a sua definição de ciência. Na obra O Universo Aberto, a
ciência é apresentada como uma construção racional cada vez mais adaptada à
realidade, de modo figurativo, é como se consistisse numa construção de uma
rede em constante adaptação no sentido de alcançar mais realidade. E porque a
complexidade pode ser um obstáculo à falsificação, a ciência será uma
supersimplificação sistemática da realidade[8].
O que temos em mira é a verdade e cada construção racional corresponde a uma
aproximação a essa verdade incógnita, levando-nos a adjectivar as teorias
científicas como verosimilhantes. Se recorrermos à testabilidade da conjetura
de que «todos os cães têm cauda» e ela resistir-lhe, então podemos afirmar que
existe uma proximidade com a realidade de que todos os cães têm cauda apesar de
nunca podermos universalizar esta asserção. Significa isto que, caso surja um
caso de ausência de cauda, a conjetura é automaticamente abandonada, não
havendo espaço para qualquer actualização.
A conjectura que a substitui possuirá, pois, um melhor enquadramento racional,
«apanhará» mais realidade, será mais simples e, por isso, mais falsificável. A
t2 é melhor do que a t1 porque tem assertivas mais precisas, explica mais
factos, descreve-os melhor, resistiu a testes, suscita novos problemas e novos
testes[9].
Por outras palavras, t2 é mais verosímil do que t1 e, curiosamente, menos
provável. Quanto mais verosímil, menos provável a teoria será e mais pertinente
se torna. Sem querer entrar na discussão etimológica da palavra verosimilhança,
Popper prova a confusão existente entre os termos verosimilhança e
probabilidade. Temos que, entre o conteúdo empírico (ce) e a Probabilidade (p),
há uma relação de inversão proporcional: quanto maior o ce, menor é a p.
ce(a) <ce(a+b)> ce(b)
p(a)
> p(ab) < p(b)
O critério
falsificacionista é atrativo. Parece sugerir que a ciência se caracteriza por
uma constante testabilidade, o que poderá encontrar exemplos significativos que
assim seja. A ciência é instável, necessita de procedimentos elaborados e
honestos, implica uma procura constante e uma ausência de satisfação definitiva
e plena por haver alguma inovação porque logo a seguir se constrói mecanismos
que sujeitam a investigação a um permanente processo crítico. Contudo, é muito
comum dizer-se que o «dever ser» que caracteriza a epistemologia de Popper não
lhe fornece grande legitimidade prática. Creio até que vai um pouco contra a
natureza humana. Inverter a lógica da pesquisa de um processo verificacionista
para um modelo falsificacionista obriga a uma inversão total na própria lógica
do cientista. Inclusive, há procedimentos históricos que mostram a inadequação
do falsificacionismo com a prática quotidiana de ciência. Factualmente, teorias
que haviam sido aceites e que, pese embora o surgimento de factos que pareciam
ir contra os modelos sugeridos, continuaram a ser aceites. Por exemplo, Nos primeiros anos de sua
vida, a teoria gravitacional de Newton foi falsificada por observações da
órbita lunar. Levou quase cinquenta anos para que essa falsificação fosse
desviada para outras causas que não a teoria de Newton.[10]
Se a teoria corpuscular de Newton fosse falsificada pelas observações que
levaram à teoria ondulatória, então não seria possível proceder-se à
reintegração da teoria corpuscular quando se chegou à conclusão da limitação da
teoria ondulatória.
4. Pode
Lakatos resolver a encruzilhada?
Começa
Lakatos por afirmar que a filosofia da
ciência sem a história da ciência é vazia; a história da ciência sem a
filosofia da ciência é cega[11].
Esta recuperação da frase de kant relativa ao conhecimento a priori e a posteriori
mostra bem ao que Lakatos veio. Da mesma forma que Kant concilia o empirismo e
o racionalismo, também Lakatos pretende conciliar Kuhn com Popper, relegando,
porém, o relativismo que o repudiava e negando o falsificacionismo. Apesar do
autor ter uma especial predilecção por este, rejeita-o como fenómeno
preponderante no desenvolvimento científico. As teorias possuem mecanismos
próprios de manutenção da progressividade. A história da ciência falseia o
falsificacionismo.
Para Lakatos, os
programas de investigação científica possuem partes fundamentais: o núcleo
firme da teoria, a heurística negativa e a heurística positiva. A ideia será a
de «proibir» a lógica Tollens de Popper ou a anomalia de Kuhn ao âmago da
teoria.
O núcleo firme
de uma teoria é identificável pelas suas características fundamentais,
concretizando melhor, as ideias centrais de Newton assumem-se com a afirmação
do espaço e tempos absolutos e as ideias de Einstein de que o espaço e o tempo
são relativos. Do mesmo modo, o núcleo irredutível de um programa geocêntrico é
a ideia de que os planetas gravitam à volta da terra e do programa
heliocêntrico é necessariamente o oposto. Este núcleo é protegido por uma
heurística negativa que não é mais que a exigência de que, durante
o desenvolvimento do programa, o núcleo irredutível deve permanecer intacto e
sem modificações. Quem abandone este núcleo, abandona o modelo. Há muitos
exemplos de dissidentes na história da ciência. A heurística positiva é o
processo de intervenção da teoria a partir da qual se promove mecanismos de
protecção a todo o custo, desenvolvendo técnicas matemáticas e experimentais
adequadas[12]. Desde
logo, há pontos de contacto com Kuhn. em primeiro lugar, a ênfase dada à
história da ciência, apesar das diferenças introduzidas de história interna e
externa[13];
a importância que os cientistas dão ao núcleo central da teoria, que Kuhn
afirma assemelhar-se à noção de Paradigma .e,
finalmente, a predisposição paradigmática de promover formas de adequação das
teorias a novas descobertas como pode ser encontrado na heurística positiva.
O
processo de substituição de teorias passa pela definição das noções de
degenerescência e progresso. O progresso de uma teoria reside na capacidade de
prever e descobrir novos fenómenos, é uma atividade proativa da heurística
positiva. Quando a força desta se desvanece começa a dar-se mais atenção às
anomalias e aos programas de investigação mais progressista. Chalmers[14]
dá exemplos da substituição de programas de investigação rivais tendo como pano
de fundo as investigações de Faraday e a noção de electricidade como um fluído
de partículas que residiam nos corpos carregados electricamente. Todavia, estes
exemplos também mostram as lacunas de Lakatos - como também de Kuhn e o
correspondente conceito de incomensurabilidade - porque prova que é possível
haver compromissos entre programas de investigação rivais ou até
complementaridade, como o exemplo da teoria eletromagnética clássica que
resultou da reconciliação dos dois programas de onde herdou o «campo» e o
«electrão».
Em
que ficamos?
A Ciência é o saber por excelência. Complexa, porém simplificadora; verdadeira, porém aproximada; racional, porém enquadrada no seu próprio tempo; objectiva, porém não completamente neutra. Todos estes filósofos tiveram o condão de enobrecerem o conhecimento. Parece-me evidente que em todas as épocas existe um núcleo central, uma matriz, um modelo que promove a dinâmica científica, apesar de muitas vezes só ser perceptível quando é feita a retrospecção. O sucesso de certas teorias também passa por aí, do mesmo modo que a rejeição de tantas outras. O Darwinismo impôs-se mas assistiu a resistências imensas por parte do criacionismo e respectivo ambiente científico. A ciência também é uma lógica de poder. Mas não é conservadora, como Kuhn a intitulou. Kuhn tem a vantagem de alargar o conceito de cientificidade a todas as áreas como é constatável pela capacidade explicativa do conceito central de paradigma. No entanto, Lakatos ganha uns pontos ao distinguir a história interna da história externa. Mas esta distinção não será meramente conceptual? Popper diria que sim. O falsificacionismo não é mais do que uma resposta ao indutivismo, ao problema suscitado por Hume e ao verificacionismo herdado do neopositivismo, mas tem o proveito de recuperar a racionalidade e a objectividade científica. A resposta aos testes ainda é o que define se uma teoria é melhor do que outra. Na pesquisa pura, que diversas vezes é determinada pelas necessidades circunstanciais das sociedades, a testabilidade, o controlo sistemático das variáveis, a manipulação factual e experimental ainda predomina no desenvolvimento científico e serve para o problema da demarcação. Uma boa teoria científica ainda é aquela que melhor define os momentos de investigação e melhor resposta dá aos problemas e a passagem de uma teoria para outra resulta sempre de um processo meticuloso de aplicação e de construção técnica de corroboração ou falsificação, como pode ser exemplificado por todo o aparato técnico do Bosão de Higgs. A grande vantagem do conhecimento científico é a capacidade de perceber como surge, de onde surge e para onde vai. Sabe-se que a ideia de racionalidade pura não existe na ciência. As teorias de Newton tornaram-se na base do mecanicismo que não é inseparável da ideia de ordem e criação divinas[15]. Kuhn e Lakatos tiveram o mérito de dar ênfase ao carácter comunicacional, persuasivo e argumentativo do compromisso científico, apesar do primeiro ter caído num excessivo relativismo. Esta consciência epistémica fornece à filosofia um papel de primordial utilidade na construção quase racional da ciência.
António Daniel
Fernandes Pereira da Costa.
[1] Thomas
Kuhn, A Estrutura das Revoluções
Científicas, 5ª edição, Trad Beatriz Boeira, Nelson Boeira, Editora
Perspectiva, S. Paulo, 1962.
[2] Ibidem, p.43.
[3] Ibidem, p. 77 e ss.
[4] Thomas
Kuhn, A Tensão Essencial, trad. Rui
Pacheco, Ed 70, Viseu, 1989, p. 388.
[5] AAVV, A
Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, cultrix, S. Paulo, 1979, p 67.
[6] Karl
Popper, Conjecturas e Refutações,
Brasília, Editora da UnB. 1980, p. 14
[7] Karl
Popper, O Conhecimento e o Problema da
Mente, trad Joaquim Gomes, Ed70, Lisboa, 1997, p. 23.
[8] Karl
Popper, O Universo Aberto, Nuno
Fonseca, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1988, p. 59.
[9] Karl
Popper, Conjeturas e Refutações, p.
258
[10] A F
Chalmers, O que é a Ciência Afinal?,
trad, David Filker, editora Brasiliense, 1993, p. 98.
[11] I.
Lakatos, Historia de la Ciencia,
trad. Diego Nicolás, Editoril Tecnos, 1987, p. 11.
[12] A. F.
Chalmers, op cit, p. 160.
[13]
A este propósito diga-se que a história interna diz respeito à realidade
científica em si, às atividades profissionais dos seus membros e a história
externa analisa o contexto civilizacional ou cultural que envolve o processo
científico. Esta distinção, que Kuhn apelida de artificial, visava salvaguardar
o plano do rigor científico dos fenómenos extracientíficos.
[14] A. F.
Chalmers, Op cit, p. 123 e ss.
[15] John
Gray, Sobre Humanos e Outros Animais, Trad. Miguel S. Pereira, Lua de Papel,
2008, p. 33