O objetivo de qualquer sociedade
evoluída, civilizada e de mente aberta é garantir a felicidade das pessoas que
dela fazem parte. E não existe nada mais importante para a felicidade de alguém
que a liberdade. Muitas vezes para sermos felizes é mais importante podermos
fazer algo do que fazermos algo. Eu, uma pessoa que adora ler livros no seu
tempo livre, detesto quando sou obrigado a fazê-lo no âmbito da escola, mesmo
que o livro que sou forçado a ler seja aquele que eu iria ler no meu tempo
livre, pois a felicidade que o meu livre arbítrio me proporciona sobrepõe-se à
felicidade que a leitura de qualquer livro me possa dar. Assim, a liberdade
está diretamente relacionada com a felicidade, e por isso mesmo é um pilar
fundamental das culturas mais evoluídas.
Sabendo que a liberdade pode tomar
várias formas diferentes, neste texto vou defender um tipo específico de
liberdade, a de expressão. Por vários motivos, que passo a explicar a seguir, a
liberdade de expressão deve ser (quase) total. Introduzo a palavra
"quase" entre parênteses pois existe uma exceção muito específica
para esta liberdade, que acontece quando a segurança física de uma ou várias
pessoas é colocada em risco. Se me encontrar no meio duma multidão, por
exemplo, devo ser proibido de gritar "BOMBA" ou "INCÊNDIO",
pois corro o risco de lançar o pânico e possivelmente causar feridos. Mas
tirando este tipo de exceções muito específicas, a liberdade de expressão deve
ser total.
Devo começar por afirmar que a
liberdade de expressão é condição necessária (mas não suficiente, obviamente)
para que exista democracia. Se fizermos parte de um país que utilize as
eleições como método de eleger os seus líderes ou representantes mas não houver
liberdade para que cada pessoa defenda as suas ideias e opiniões, então não
estamos perante uma democracia, pois esta presume que quem tem o poder é o povo
(demos – palavra para “povo” em latim
e kratos – palavra para “poder/forma
de governo” em latim juntaram-se para formar a palavra demokratia – palavra para “democracia” em latim), e se uma pessoa é
influenciada e manipulada através da opressão e da censura a votar em alguém, sem
ter acesso a ideias e opiniões diferentes e a críticas relativamente à forma de
governação vigente, deixa de poder tomar uma decisão livre e informada e por
isso deixa de ter qualquer poder na escolha dos seus líderes ou representantes,
logo não se pode afirmar que viva numa democracia. E não será polémico afirmar
que qualquer país que, neste momento, não seja gerido de forma democrática,
deverá ser considerado sub-desenvolvido, injusto e imoral.
Passando da democracia para uma
perspetiva mais geral, é importante perceber que, no fim, quem sai sempre
prejudicado com as limitações da liberdade de expressão são os menos poderosos,
mesmo que estas limitações tenham o objetivo de os proteger. Olhemos para o
bullying, um problema muito atual e relevante. Há quem defenda que este deve
ser combatido com a censura de palavras ou expressões consideradas
desrespeitosas, violentas, agressivas... Mas quem é que iria beneficiar com
isso? Quem pratica o bullying, e que, neste exemplo, se encontra numa posição
de poder, iria, provavelmente, arranjar soluções mais criativas e disfarçadas
de "torturar" as suas vítimas. Já as vítimas, que continuariam a
sofrer com o bullying, teriam mais medo e mais vergonha em pedir ajuda, por se
encontrarem num "regime" opressivo e de censura. Quem tem mais poder
tem sempre vantagem a contornar a censura enquanto alguém com menos poder terá
sempre desvantagem, pois a possibilidade das pessoas menos poderosas se
exprimirem livremente é uma das maiores armas que estas mesmas pessoas têm para
combater as injustiças que passam diariamente.
Para além disto tudo, ainda existe
outro problema com as limitações à liberdade de expressão, que é o de estas,
tal como as limitações a qualquer outra liberdade, funcionarem como uma bola de
neve.
A seguir a «pandemia» e «confinamento»,
a expressão que mais deve ter entrado no vocabulário das pessoas no último ano
foi cancel culture (cultura do
cancelamento). Esta cultura começou como uma forma de justiça social e de luta
contra o poder através das redes sociais, como o Me Too, que expôs uma série de pessoas famosas que atuavam como
agressores sexuais, mas que nunca eram apanhados devido à rede de influências e
poder que estava instalada. Aqui, e como é possível observar, a liberdade de
expressão teve um efeito positivo na sociedade e funcionou como uma forma de
dar poder aos menos poderosos. Só que esta cultura, que no início celebrava a
liberdade de expressão, começou a tentar limitá-la. Inicialmente, algumas
pessoas podem considerar que estas limitações tiveram efeitos positivos, pois
permitiram retirar protagonismo e limitar a expressão de pessoas que proferiam
afirmações racistas, homofóbicas, etc.. Mas como seria de esperar, mesmo que
por bons motivos, as limitações à liberdade de expressão funcionam como uma
bola de neve e não tardou muito para se começar a tentar cancelar coisas como opiniões
políticas, músicas, piadas e basicamente tudo o que saísse do que esta cultura considerasse
aceitável. Muitos humoristas viram-se impedidos de realizar o seu trabalho pois
tiveram as suas redes sociais bloqueadas, músicos viram espetáculos e concertos
cancelados porque escreveram “tweets controversos” e houve, inclusivamente,
restaurantes que foram à falência depois de publicações que fizeram nas redes
sociais que foram consideradas ofensivas e que desencadearam uma onda de
críticas falsas e negativas nos seus sites que afastaram os clientes,
provocando o desemprego de várias pessoas, tudo por causa duma publicação. A censura
é uma bola de neve que vai sempre "engolir" os menos poderosos.
Então devemos tolerar afirmações
que vão contra os direitos humanos ou insultos e ofensas gratuitas a outras
pessoas? Sim e não. Sim, porque não devemos limitar a liberdade de expressão
destas pessoas, visto que não sabemos as repercussões que essas limitações
possam ter, repercussões essas que, historicamente, têm tendência a prejudicar
os mais fracos, mesmo que a intenção inicial dessas limitações seja
defendê-los. E não, não devemos deixar passar em branco esse tipo de
afirmações, pois a liberdade de expressão total funciona para os dois lados, e
com ela podemos tentar corrigir, avisar ou chamar a atenção para o facto desses
comportamentos não serem corretos.
Numa utopia em que toda a gente
respeitasse os direitos e liberdades das outras pessoas, a questão da liberdade
de expressão não se colocaria, pois ninguém sentiria a necessidade de silenciar
o outro, mas como não vivemos numa utopia, é mandatório tentar compreender qual
é a solução para este problema que levanta menos injustiças e que nos permite
caminhar para um mundo mais evoluído. E pelas razões que acabei de apresentar,
a solução deve passar sempre pelo aumento da liberdade, e não pela sua
limitação.
Francisco Macieira, Nº11, 11D
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