quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Poder

Será possível definir poder? Wittegenstein traz-nos uma transmutação significativa quanto aos conceitos, entendidos como noções. Quando definimos algum conceito é difícil encontrar pontos de intercepção, apesar de dizermos o conceito. Por outras palavras, dizemos que o criket ou o futebol, a natação ou o xadrez são desportos apesar de se encontrar entre eles aspectos diferenciadores: o carácter competitivo, as noções de perder e ganhar apresentam nuances particulares. Wittegenstein concluiu, então, que o que existe é «uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Parecenças de conjunto e de pormenor» (Wittengenstein, Investigações Filosóficas, F.C.G., Lisboa 1997). A forma encontrada para nomear esta ideia foi o termo «família», na medida em que os membros de uma família apresentam particularidades individuais e porque percorre nesse conjunto uma transversalidade de aspectos que determinam o significado, o nome. Consequentemente, quando falamos em Poder não devemos descurar a intercepção de uma multiplicidade de aspectos que se cruzam e promovem uma certa identidade.

Uma particularidade muito presente nos textos bíblicos é a adequação do bem face ao poder. Na leitura da Epístola aos Romanos, S. Paulo evidencia a necessidade de um bom cristão se submeter ao poder. O próprio Santo Agostinho nas Confissões identifica o pecado original com o pecado da desobediência. Obviamente que S.Paulo, além de ter em mente fundamentar uma convivência pacífica com Roma, sabia que Jesus Cristo era o alfa e o ómega, o princípio e o fim (ver Álvaro Pais, Espelho dos Reis); o poder temporal, humano, está ao serviço das vicissitudes pecaminosas do homem, o que não significa que Deus não esteja lá presente, pelo menos mediatamente, por que imediatamente estão os seus representantes, o que, no caso de S. Paulo, se concretizava. Portanto, «submeta-se cada qual às autoridades constituídas. Pois não há autoridade que não tenha sido constituída por Deus e as que existem foram estabelecidas por Ele.» (São Paulo, «Epístola aos Romanos», in Bíblia Sagrada, Verbo Lisboa, 1982, pág. 1291). O horizonte desta postura pode ser encontrado num conceito muito caro à tradição cristã em geral e católica em particular: a Unidade como contraponto à diversidade, esta sim, pode protagonizar a pulverização e o pecado, a divisão e a desordem, o primado da matéria sobre o espírito.

Levi strauss: A escrita e o poder.
Em Tristes Trópicos, Levi Strauss, através da sua epopeia junto dos Nambiquaras apresenta a situação da escrita face à cultura. Numa perspectiva empírica somos levados a considerar a escrita algo como concernente à expansividade intelectual em detrimento do carácter sociológico. Ora, Strauss demonstra a predominância deste face ao intelectualismo. O chefe, aquando da apresentação do lápis e do papel, facilmente depreendeu a utilidade da escrita embora não tenha exercido qualquer intenção significativa. Embora «o seu símbolo fosse utilizado, a realidade continuava estranha» (Levi Strauss, Tristes Trópicos, capítulo XXVII). Facilmente se constatou que a utilização de «traços» por parte do chefe serviu, acima de tudo, para a efectivação do poder. Strauss descreve a cena de tal forma que nos transmite uma imagem do que seria a representação do chefe face à escrita e a consequente admiração de que era alvo pelos seus súbditos. Esta descrição levou Strauss a demonstrar, através de exemplos históricos, a função primordial da escrita: manutenção do poder. Poder-se-ia objectar esta ideia a partir da constatação da importância da escrita no desenvolvimento científico dos séculos XIX e XX. Contudo, Strauss diz que a escrita é condição necessária mas não suficiente (Levi Strauss, op.cit), na medida em que o período com maior desenvolvimento humano – neolítico – não coincidiu com a descoberta da escrita. Desta forma, a escrita sugere um rosto de manifestação imperial e manutenção de territórios. Inclusive, a luta contra o analfabetismo possuiu uma intenção que visava, acima de tudo, o reforço e o controlo do poder. Porquê? Por que «ninguém pode ignorar a lei» (Levi Strauss, op.cit).


A partir da descrição feita do chefe dos Nambiquaras na obra de Levi Strauss, parece claro a existência de uma liderança legitimada pela sua acção: na resolução dos problemas, na antecipação de situações, dinamismo na escolha de itinerários, em suma, o chefe é o que expõe, criando uma identidade grupal. Max Weber define bem este poder: «Probabilidade de impor a vontade a outrem.» (Max Weber, Três Tipos de Poder Legítimo,trad. Artur Mourão, www.lusosofia.net. Pág.3).
O Poder Legal caracteriza-se por uma autoridade possuidora de dois elementos fundamentais:heteronomia e heterocefalia. É resultado de uma vontade exterior ao indivíduo e, por isso, é formal. A regra é o seu leit motiv e o seu ideal é ordenar de acordo com objectivos pré-definidos. O objecto é burocrático, encontrando-se materializado, segundo Weber, nos modernos estados e nas empresas capitalistas (Max weberopcit. Pág. 4).
O Poder Tradicional existe para além da legalidade, legitimando-se na tradição dando corpo à máxima «valendo desde sempre» (Max Weber, op.cit , pág. 5). A dominação patriarcal é o seu máximo expoente e possui raízes numa subordinação inevitável face ao poder tradicional. Cria-se, por isso, uma rede de dependências, exercendo o governo por meio da aversão, da emoção, do agrado e, acima de tudo, dos favores pessoais. Weber apresenta dois tipos de poder tradicional: o poder segundo ordens e o poder puramente patriarcal (Weber, op cit, pág. 5 e ss). O primeiro está vinculado à estrutura patriarcal (clã, chefe de família…), é o tipo mais puro do poder tradicional; o segundo representa mais um nível de administração mas cuja servidão lhe está intimamente ligada. A posse é traduzível por este tipo de poder em que os meios de administração são inteiramente desenvolvidos e legitimados pelo senhor, diferenciando-se, por isso, do poder legal pela sua forma intrínseca de deliberação de normas.
Finalmente, o poder carismático vai corresponder com uma ruptura do poder tradicional. Reconhece-se no líder a capacidade para desviar as relações habituais.Caracteriza-se por uma dedicação especial, pelos seus discursos, revelações mágicas, pela postura heróica, a uma pessoa. Os seus tipos mais puros são a autoridade do profeta, o herói guerreiro e o demagogo. Este último é uma invenção dos estados ocidentais contemporâneos; os outros dois correspondem a mecanismos mais ancestrais, embora actualizantes, próprios de uma tradição judaico-cristã. O herói corresponde ao Herzog,ao guerreiro carismático com o seu séquito (Weber, opcit, pág. 10 e ss).

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