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No programa de Filosofia de 10º ano surge a dado momento a tarefa de distinguir juízo de facto de juízo de valor. Todos nós somos tentados por um certo institucionalismo e apresentamos a temática numa espécie de dicotomia acrítica quando é um assunto de especial sensibilidade filosófica e que merece uma maior problematização do que aquela que habitualmente é apresentada.
Creio que um ensaio de Hilary Putnam mostra as inconsequências da forma dicotómica, tentando provar que os enunciados factuais e as práticas de investigação que lhes fornecem sustentabilidade pressupõem valores (Hilary Putnam, Razão, Verdade e História, Publicações D. Quixote, 1ª edição 1992, p.168).
Concomitante ao conceito de facto está a noção de verdade que possui
tudo menos uma resolução simples (https://antoniodanielfpc.blogspot.com/search/label/Verdade).
A tónica de Putnam está no facto intuitivo de aceitarmos sem que haja
reservas sempre que alguém nos diz «queres saber a verdade?». O problema está
nos «padrões de racionalidade» que a pessoa possui. Por isso, quando afirmamos
que o único objectivo da ciência é obter a verdade pretendemos acrescentar que
«a verdade não é o fundo da questão: a própria verdade obtém a sua vida dos
nossos critérios de aceitabilidade racional, e estes são aquilo que devemos
olhar se quisermos descobrir os valores que estão realmente implícitos na
ciência.» Sem esta conceção de racionalidade – que nos fornece «os padrões que
nos dizem quando devemos e quando não devemos aceitar enunciados» (p.177) - não
é possível afirmarmos que algo é um facto. Que noções estão presentes nesta
racionalidade? Coerência, simplicidade, adequação e clareza parecem ser
padrões, isto é, uma soma de valores e estes valores estão condicionados
historicamente como estão os valores de beleza ou de bondade.. Valores sem
factos são etéreos, factos sem valores são vazios.
É comum examinarmos os factos com
uma correspondência entre o que é dito e a realidade, entre o conceito e aquilo
que ele nos diz. A simples perceção também nos remete para a existência de
valores. Como Putnam (p.178) afirma, percecionar um quarto sem enquadramento
cultural e, portanto, conceptual, torna o conhecimento factual impossível de
ser reconhecido, levando a pressupor que o realismo ingénuo é manifestamente
insuficiente. A negação da dicotomia entre facto e valor ainda é mais evidente
quando pretendemos descrever uma pessoa. Aplicar o conceito indelicado ou delicado pode funcionar de forma simultânea como censurar,
enaltecer alguém ou mesmo descrever. Ao afirmarmos que alguém é indelicado não
podemos estar também a descrevê-lo?
Tal é evidente na hipótese
apresentada por Putman dos superbenthamianos.
A descrição normalmente associada ao facto está enclausurada num sistema de
valores. Imaginando que os superbenthamianos desenvolveram
mecanismos de avaliação ética a partir do pressuposto de que, por exemplo, a
mentira é legítima se maximizarmos o nível geral do prazer. Será fácil constatar que «ao fim de algum tempo o uso da descrição “honesto” entre os superbenthamianos seria extremamente
diferente do uso desse mesmo termo descritivo entre nós» (p. 181), tendo como
consequência também a diferença de vocabulário para descrever situações
interpessoais. Linguagens diferentes, mundos diferentes: não levará muito tempo
em que o mundo em que os superbenthamianos
vivem será radicalmente diferente ao nosso mundo.
Tanto nos «factos» como nos
«valores», há uma adequação àquilo que é habitual. A visão mostra-nos factos
pelo «facto» de se inscrever num certo comprimento de onda onde é possível
vislumbrarmos. Fora desse contexto, a visão é considerada defeituosa. Assim,
tal como a visão nos dá o mundo habitual, também a ideia de justiça nos dá o
que é justo «para nós». Putman quer, assim, mostrar que a natureza dos enunciados
físicos é do mesmo pendor de outros
enunciados, como os enunciados éticos. E, tal como não caímos no relativismo
dos enunciados da física, também não devemos relativizar ou subjectivizar os
valores. Os teoremas da física ou da matemática, sem deixarem de ser «para
nós», não deixam de ser objectivos, apesar de não ter respostas determinadas.
Também no que respeita aos valores, não existem respostas determinadas, porém é
possível rejeitar a ideia de que qualquer ideal humano é tão bom como qualquer
outro. Para Putman, a base da descrença na objetividade ética reside no receio
do Estado se apoderar da moralidade, impondo um autoritarismo moral e político
ou uma religião de Estado.
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