segunda-feira, 4 de junho de 2018

O Pensamento de Antero de Quental


1.     A Metafísica Indutiva


            De acordo com o título apresentado por Antero na sua obra Tendências..., o horizonte interpretativo da filosofia é inerente à situação circunstancial de tempo em que ela é produzida. É por este motivo que Antero apresenta uma reflexão metafísica acerca dos paradigmas filosóficos do período em questão, no sentido de encontrar os princípios fundamentais concomitantes a todas as tendências presentes na Segunda metade do século XIX.
            Depois deste estudo, Antero imprime algo de novo na semântica filosófica, apresentando o conceito de metafísica indutiva. A originalidade deste termo prende-se, não tanto pelo seu campo semântico, mas pela conciliação que Antero pretende alcançar nesta altura, e sublinha-se este facto temporal, entre o conhecimento científico e a indagação metafísica. Já Kant havia estabelecido a dissemelhança entre conhecer e pensar, ou seja, entre fenómeno e noumeno
            Numa época em que fervilhavam os confrontos entre filosofias, Antero, com grande influência de E. Hartmann, procurava a devida conciliação das antinomias presentes[1] no horizonte cultural da Europa ocidental. É neste enquadramento que devemos interpretar o termo metafísica indutiva.
            A primeira ideia subjacente ao conceito supracitado será a crítica que Antero despoletará ao positivismo e cientismo e, simultaneamente, à filosofia idealista de cariz dedutivo. O reducionismo científico consistiu na factualização de todos os fenómenos registados no universo. Num contexto de pura interpretação materialista, a ciência protagonizava uma explicação puramente fenomenal de todos os aspectos da realidade, permitindo o advento da ideia da hegemonia do conhecimento científico face aos outros domínios do saber. No sentido de estabelecer os domínios cognoscíveis, a ciência estabeleceu o determinismo, como a ideia de que os acontecimentos cósmicos possuem uma conexão necessária, independentemente do tempo e do espaço. Desta forma, todos os acontecimentos estão de tal forma interrelacionados que seria possível encarar com previsibilidade todos os fenómenos que ocorressem no futuro, se no presente conseguíssemos estabelecer as relações de causa e efeito entre esses fenómenos. Esta conexão necessária entre a causa e o seu inevitável efeito, designada por causalidade fenomenal, exprime uma visão puramente mecânica do universo, em que todos os seus órgãos funcionavam como uma máquina perfeita de engrenagens entre as partes que, por sua vez, estabeleciam o todo (mecanicismo). Concomitante a estes princípios, está presente a forma ou o método empregue no estudo científico que consistia, e consiste, no enaltecimento da Indução e do método experimental. Ao conjugar estes princípios com o materialismo de, por exemplo, Miguel Bombarda e o Monismo de Haeckel, somos levados a considerar que tudo é perspectivado num ponto de vista naturalista e factual, e o que ultrapassar estes limites científicos devem ser considerados como epifenómenos, isto é, fenómenos que não merecem o epíteto de científicos, como é o caso da consciência, da liberdade e da espontaneidade.
            Antero, perante um panorama deste género, e não esquecendo o seu espírito poético e apaixonado[2], tenta recuperar a metafísica, não daquele ponto de vista panlogista, totalizante e apriorista, em que tudo era absolutizado pela acção do espírito absoluto (Hegel) e onde não havia lugar para a liberdade, mas por um ponto de vista que reconhecesse a importância da ciência e os seus próprios limites. É aqui que Antero recupera os termos conciliatórios do fenómeno e do noumeno kantianos: enquanto o fenómeno é remetido para a indagação científica, o noumeno, ou seja, tudo aquilo que ultrapassa a ciência, seria objecto da metafísica (tudo o que está para além da física), como o sentido do universo, a consciência, o espírito e a liberdade. «Deste modo, a vocação da filosofia do futuro é indutiva; será um espiritualismo idealista entroncado no materialismo. Realista, nas suas bases indutivas, transcendental, nas ideias metafísicas»[3]. A metafísica, ao não descurar o apoio base das investigações científicas, coordenará um alargamento no âmbito da explicação da realidade, no sentido de estabelecer um uma teoria geral do ser, da existência. Sendo assim, a metafísica partirá do concreto particular (indutivismo) para a substancialização geral (metafísica), para ir ao encontro da finalidade própria do universo. Estamos, pois, perante um optimismo metafísico, evidente em alguns sonetos de Antero e na obra T.G.F:

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pacigo...

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

E agora nas T.G.F.:

«Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as moles estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas, que torna efectiva a evolução das coisas.»[4]

Aqui está a conciliação das aparentes dicotomias: Ciência / Filosofia, Fenómeno/ noumeno, Determinismo / Liberdade, Matéria / Espírito, enfim...Tristeza / Alegria.


            Com a mediação do criticismo kantiano, Antero imprime uma vertente sincrética na filosofia. Pela ideia de espontaneidade, raiz da liberdade, o homem compreende a sua própria natureza que identifica com as forças do universo. É por esta noção de espontaneidade que Antero opera a conciliação entre o mecanicismo e o espiritualismo, entre liberdade e determinismo. Para Antero, a noção de espírito envolve as noções de força e causa, isto é, o espírito é uma força-causa. Por conseguinte, os verdadeiros motivos do mundo fenoménico são encontrados no mundo do espírito, traduzindo o dinamismo psíquico como a chave do dinamismo mecânico.
            Esta concretização espiritual de toda a realidade e o enfoque dado na finitude do materialismo tem a sua base na influência que E. Hartmann exerceu sobre a fase mais madura de Antero. Para Hartmann, o processo da natureza é o duro trabalho do espírito para se encontrar a si mesmo e não se podem considerar os processos naturais unicamente do ponto de vista da causalidade. A finalidade de todo o telos universal encontra-se inconscientemente na natureza e conscientemente no homem. O inconsciente é o noumeno, a coisa em si, a essência última dos seres. O espírito é a substância constitutiva de todo o universo. Não está sempre consciente, mas tende para a consciência. Esta dinâmica é a espontaneidade (do inconsciente ao consciente). A existência do mundo (mecânico e determinista) é o reino da dor, do sofrimento e da angústia, só suplantada pela tomada de consciência da liberdade, isto é, pela ausência de existência fatalista.

2.     A Filosofia da Natureza


                Num período dominado pelas hipóteses de Darwin, pelo evolucionismo de Spencer e pelo monismo de Haeckel, o homem perdia a sua dignidade como centro e o fim da criação. É considerado como mais um elemento na dinâmica natural da substância monista. Toda a natureza está submetida, em conexão causal, a um grande processo único de evolução (evolução da natureza inorgânica e orgânica). Desconhecemos o princípio e o fim deste processo evolutivo universal. Perante este panorama científico, Antero também acreditou na ciência como meio de resposta às ansiedades humanas, embora a tivesse criticado. Esta crítica visou fundamentalmente o reducionismo gnoseológico e epistemológico protagonizado pelas ciências e a demasiada elementaridade ontológica, traduzida na visão monosubstancialista da realidade, em que os fenómenos superiores não estavam incluídos, como são exemplos a liberdade e a consciência. Será tudo determinado? Não haverá liberdade? Serão os fenómenos da consciência puras ilusões? Para um homem que sempre lutou pela liberdade e para um poeta que sempre transmitiu emoções e sentimentos, esta ideia de que tudo estava limitado pelas regras e leis regulares do determinismo biológico não encontrava guarida no pensamento de Antero. Ele mesmo questiona na obra T.G.F. se na história humana não intervém o acaso em oposição ao determinismo e fatalismo, quer materialista quer idealista.
            Uma das noções difundidas pela ciência era a ideia de espontaneidade como essência da matéria. É aqui que Antero irá formular a crítica ao naturalismo vigente, considerando que, principalmente o monismo, entrava em contradição com esta noção de espontaneidade, porque afirmava a inércia. A noção anteriana de espontaneidade identifica-se com a ideia de força espontânea ou força-causa e conota-se com a noção de dinamismo que é a essência, não só da consciência, mas de toda a realidade natural. O dinamismo mecânico está subordinado ao dinamismo psíquico. Esse dinamismo é imanência, espontaneidade, finalidade, expansão, aumento de ser, liberdade e universalidade.
            A ideia de evolução está conectada com a afirmação anteriana da espontaneidade e da liberdade em todos os processos naturais, desde os mais simples aos mais complexos. Este facto implicará a causalidade final. Todo o movimento justifica-se porque tende para algum fim, fim este que se identifica com o aumento de ser, isto é, com o progresso espiritual de todo o universo, tornado consciente no homem.

3.     Filosofia da História


            Qualquer análise que se faça à filosofia da história de Antero de Quental não pode descurar a influência que Hegel e Proudhon exerceram sobre o nosso autor. De Hegel, Antero acolheu «a ideia de síntese, definida como reconciliação integradora e superadora de contrários e a postulação de um princípio activo e imanente, que não só é ideia, mas também é Espírito, e que por uma necessidade espontânea tem de se actualizar como natureza e como história a fim de se realizar e ganhar consciência de si.»[5] No fundo, foi Hegel que o levou a interpretar, em termos teleológicos, a marcha da natureza e da história, reconhecendo a superioridade do espírito. Porém, e não nos podemos alhear deste facto, Antero criticou Hegel e o seu sistema idealista por o considerar uma forma de privação da liberdade da consciência e uma afirmação do determinismo fatalista. Esta defesa do carácter teleológico da totalidade do real será reforçada com a visível influência que Proudhon exerceu sobre Antero, nomeadamente na ideia de que o progresso tem uma dimensão essencialmente moral, o que significa que a humanidade se autojustifica sob a excitação de um ideal de natureza ética que vence o determinismo através da revolução pacífica, desencadeando a realização progressiva da ideia de justiça que consiste, por sua vez, na finalidade própria de todo o desenvolvimento humano.
            Numa direcção de mostrar a necessidade da metafísica na compreensão global dos fenómenos, com o intuito de encontrar o sentido último do ser, Antero apresenta a sua interpretação metafísica da história, sem nunca esquecer a presença do indutivismo, na medida em que, segundo Antero, não podemos conhecer nada a priori que não seja já conhecido a posteriori.
            A espontaneidade presente inconscientemente em todas as formas da matéria, existe e torna-se consciente na história e no homem. Neste dinamismo cósmico, só o homem toma conhecimento da causa e do fim de tudo, que se identifica com um fundo espiritual e ético. A história é, então, o palco da liberdade.



[1] Não esquecer o estudo que elaborámos à volta das teorias do idealismo alemão, mormente de Hegel, do materialismo, tanto de Marx como de Miguel Bombarda, o monismo de Haeckel e o positivismo de Comte;
[2] Quanto a esta caracterização, António Sérgio, com o seu carácter pragmático e lógico, criticá-lo-á , nomeadamente pela forma como Antero conclui a obra Tendências...;
[3] Fernando Catroga, A Metafísica Indutiva de Antero de Quental, p. 486;
[4] Antero de Quental, T.G.F.
[5] Opinião de Fernando Catroga. op. cit.



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