Mariana
Alcoforado, segundo registos, viveu 83 anos. 1640, ano da sua Graça, assistiu
ao nascimento da apaixonada mais célebre da literatura portuguesa, tão célebre
que foi traduzida em inúmeros países, com especial destaque em França onde
surgiu a primeira edição das Cartas de
Amor de uma Freira Portuguesa. De França fora oriundo o objeto do seu
desejo romântico de nome Marquês Noel
Bouton de Chamilly, Conde de Saint-Léger. Possivelmente seduzida pelos combinatórios
fatores paisagísticos alentejanos, pela clausura a que estava destinada, pelos
certamente belos gracejos do marquês francês - «Quando um homem a faz rir, uma
mulher sente-se protegida» (Ugo Betti) – e, porque não dizer, pelo amor
aparentemente proibido, Soror Mariana Alcoforado ficou perdida de amores com
tónico óbvio de amor romântico.
Certamente
que a «nossa» freira, que tantas desconfianças suscitou relativamente à autoria
das suas cartas, desconhecia a vertente biológica do amor. Caso lhe dessem o
contexto empírico-científico, então saberia que os volúveis circuitos cerebrais para o amor romântico são caprichosos por
desígnio da natureza e certamente perguntar-se-ia por que razão mergulhamos no desespero quando perdemos alguém (Helen
Fisher). Contudo, razão tem Scruton quando afirma que se tentamos descrever o desejo
sexual com as categorias da
biologia humana, perdemos justamente a intencionalidade da
emoção sexual, o seu caráter imediato
relativamente ao sujeito corporizado. O melhor é não ir
pela naturalização dos afetos caso contrário perdem a intencionalidade e a
característica verdadeiramente romântica.
Não é só de perda, de dor, dor de
amar, de perda de sentido, de ciúme, de posse, de entrega total e, finalmente,
de resignação que as Cartas transmitem, também a frustração do seu amor
não ser reconhecido.
Ao longo das
cinco cartas, Mariana procura compreender a não correspondência ao seu
desesperado amor, desesperado porque ausente, culpabilizando o seu amado pela
situação de solidão, passando pela expressão do ciúme, acabando pela
desistência perante o facto consumado da ausência. Diz Mariana, a tua disposição para me atraiçoar triunfou,
afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti.
O ressentimento
de que esperava a reciprocidade da dádiva revela-se em toda a sua plenitude.
Não existir gratuitidade no sentimento é próprio do amor romântico, a presença
do eu exige o outro de uma forma total. A descentração não existe, antes é
promovida uma óbvia ideia do que se merece que se resume ao outro.
O sentir é todo
o universo e a posse do outro é imperativo. Quando o corte acontece não há
espaço para a racionalização. O querer viver em desespero é a condição
existencial quase definitiva. Contudo, as cartas são uma forma de expiação do
sofrimento, são motivadas por tentativas catárquicas de procura de alguma
significação, como se a palavra ajudasse à compreensão do absurdo que é o amor
romântico não correspondido.
Torna a afirmar Mariana:
Mas, antes de te deixares dominar por uma grande
paixão, pensa bem no excesso das minhas dores, na incerteza dos meus projetos,
na diversidade dos meus arroubos, na extravagância das minhas cartas, nas
minhas confianças, nos meus desesperos, no meu ciúme! Olha que vais ser um
desgraçado! Conjuro-te a que aproveites alguma coisa do estado em que me
encontro e que ao menos o que sofro por ti seja de alguma utilidade!
O acentuado desespero leva Mariana a conceber
a possibilidade de entrar em comunhão de prejuízo com o seu amado. A sua alma mater, residente então em França,
fá-la desejar que lhe aconteça o mesmo sofrimento, a mesma privação. Apesar de
tentar que o seu desespero possua uma certa utilidade pedagógica, Mariana
transmite a regra de ouro cristã de «não fazer ao outro o que não gostarias que
fizessem contigo», ou pelo menos, que se forme no seu amado uma espécie de
arrependimento pela tomada de consciência daquilo que promoveu a partir,
possivelmente, do inicial amor cortês, não fosse o pretendente um digno oficial
de cavalaria.
A
fragilidade imensa que vivia – sim, porque quando falamos de amor queremos designar
que nada posso sozinho - levou Mariana a descobrir nas andanças de cavaleiro uma
projeção de domínio, respeito pela palavra dada – houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita[1] -, dever de gratidão, hospitalidade, tudo
características do amor cortês que certamente fizeram despertar em Mariana a
proteção face ao abandono a que estava votada pela sua família. E quanto mais
consciência tinha do afastamento mais encontrava a razão do próprio amor no
sofrimento, levando-a a afirmar ama-me
sempre, e faz-me sofrer mais ainda, como se o seu destino fosse mesmo esse,
como a descrença num retorno alimentasse a esperança desencantada, sugerindo a
determinado passo que se tens algum
interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu
coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me finalmente, como se a
distância projetasse um desenlace de profundo abandono depois de se ter
entregado de um modo total. Vai fazer um
ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. Repare-se
na inscrição exata do tempo e na memória fotográfica dos momentos. Na segunda
carta, Mariana surge como uma desencantada, perguntado ter-me-ás deixado para sempre?
Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar
esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim![2] O
desfecho parece ser inevitável, mas sempre com a esperança renovada, porque é a
esperança que alimenta o amor romântico, na crescente ausência e no
encantamento da memória da consumação do amor. O mundo do amor romântico é
único e a sua unicidade parte da presunção de um acesso especial (contra tudo e
todos em nome do amor) à integridade, ao estado de pureza original, onde a
natureza e o humano se confundem. Mariana começa a ter noção do adiamento do
paraíso, do eterno sonho como que confinados a um espaço a tudo alheio e
incólume a qualquer interferência contaminante, por isso pergunta, como poderia esperar que ficasses para
sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares
senão em mim? É a exigência da anulação do «eu» e à exaltação do «nós», como
fundidos numa única entidade que repele o excesso de individuação e clama a
união.
O amor
romântico antecipou a importância da linguagem no amor. Os volúveis circuitos
cerebrais para o amor romântico são caprichosos por desígnio da natureza.[3] De um
ponto de vista naturalista, não encontraríamos qualquer razão para sofrer. Mas
também por capricho da natureza encontramos mecanismos de expansão do amor e,
inevitavelmente, do sofrimento. Neste também há capricho, fundamentalmente
linguístico. Melhor estaríamos se Mariana mostrasse a linguagem do Eros[4],
ficamo-nos pela imaginação porque o pudor assim o exigia. Contudo, a linguagem
serve para tudo, para a verdade e para a mentira. O maior receio de Mariana é
que o Eros de Chamilly tenha sido meandroso e enganador: Esta ideia mata-me, e morro de
terror ao pensar que nunca te
houvesses entregado completamente
aos nossos prazeres.
Sim, reconheço agora a falsidade do teu arrebatamento[5][…]
Enganaste-me
sempre que falaste do encantamento que
sentias quando eslavas
a sós comigo. Porque foi Mariana enganada? Por
que razão Mariana abandonou a realidade. Marginalizando as questões
práticas? Porque o amor romântico substitui o corpo pela palavra, fazendo
esquecer o quotidiano. A própria Mariana afirma «perdi a reputação,
expus-me à cólera da
minha família, à severidade das leis deste país para com as freiras, e à
tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males.[6]»
Que há de ser de mim?, pergunta Mariana
na 3ª carta. Na 4º constata que está mais
que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me deixa
a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste, para rematar na
5ª carta Hei de ser toda a vida uma
desgraçada!
O amor em
particular e a afeição em geral resultam comummente na procura do abrigo[7],
da segurança, onde resulta um prazer pela vida. Não é só na textura e
luminosidade da pele que transparece a aceitação do outro, é também no encontro
com o sentido da vida, onde tudo ganha significado pelo facto de não a
compreendermos. O amor romântico é assim. Assemelha-se a um estado de
inebriamento, a uma letargia por se ter finalmente encontrado o sentido disto
tudo. Acima de tudo, Mariana quis acreditar que ambos caminhavam lado a lado, a
reciprocidade de afeto seria possível, a plenitude corporal que combinava os
interesses comuns era um facto. Na 5ª carta, Mariana começa a racionalizar a
situação, constata que o seu amor de perdição a levou a tomar excessos que
resultaram em catástrofe para a nossa capacidade de aprender o amor e
desenvolver relações saudáveis. Contudo, o amor romântico é o apelo da angústia
e agonia, estados existenciais fundamentais para melhor amarmos. Felicidades
para Mariana.
[1]file:///C:/Users/f995/AppData/Local/Temp/Cartas%20de%20Amor%20de%20uma%20Freira%20Po%20-%20Mariana%20Alcoforado.pdf,
1ª carta.
[2] 2ª
carta.
[3] Hellen
Fisher, «Porque amamos? A evolução do amor Romântico», Porque Amamos: A
Natureza e a Química do Amor Romântico, Lisboa, Relógio D’Água, 2008
[4] Ver
Steiner, As Livros que Nunca Escrevi,
Gradiva, 2008
[5] Carta 3
[6] Carta 3
[7] Bertrand
Russel, A Conquista da Felicidade,
Guimarães Editora, Lisboa, pág 181 e ss.
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