domingo, 1 de novembro de 2020

O Amor Romântico. O Caso de Mariana Alcoforado

 


Mariana Alcoforado, segundo registos, viveu 83 anos. 1640, ano da sua Graça, assistiu ao nascimento da apaixonada mais célebre da literatura portuguesa, tão célebre que foi traduzida em inúmeros países, com especial destaque em França onde surgiu a primeira edição das Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa. De França fora oriundo o objeto do seu desejo romântico de nome  Marquês Noel Bouton de Chamilly, Conde de Saint-Léger. Possivelmente seduzida pelos combinatórios fatores paisagísticos alentejanos, pela clausura a que estava destinada, pelos certamente belos gracejos do marquês francês - «Quando um homem a faz rir, uma mulher sente-se protegida» (Ugo Betti) – e, porque não dizer, pelo amor aparentemente proibido, Soror Mariana Alcoforado ficou perdida de amores com tónico óbvio de amor romântico.

Certamente que a «nossa» freira, que tantas desconfianças suscitou relativamente à autoria das suas cartas, desconhecia a vertente biológica do amor. Caso lhe dessem o contexto empírico-científico, então saberia que os volúveis circuitos cerebrais para o amor romântico são caprichosos por desígnio da natureza e certamente perguntar-se-ia por que razão mergulhamos no desespero quando perdemos alguém (Helen Fisher). Contudo, razão tem Scruton quando afirma que se tentamos descrever o desejo  sexual  com  as categorias   da   biologia   humana,   perdemos justamente a intencionalidade da emoção sexual, o seu   caráter   imediato   relativamente   ao   sujeito corporizado. O melhor é não ir pela naturalização dos afetos caso contrário perdem a intencionalidade e a característica verdadeiramente romântica. 

Não é só de perda, de dor, dor de amar, de perda de sentido, de ciúme, de posse, de entrega total e, finalmente, de resignação que as Cartas transmitem, também a frustração do seu amor não ser reconhecido.

Ao longo das cinco cartas, Mariana procura compreender a não correspondência ao seu desesperado amor, desesperado porque ausente, culpabilizando o seu amado pela situação de solidão, passando pela expressão do ciúme, acabando pela desistência perante o facto consumado da ausência. Diz Mariana, a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti.

O ressentimento de que esperava a reciprocidade da dádiva revela-se em toda a sua plenitude. Não existir gratuitidade no sentimento é próprio do amor romântico, a presença do eu exige o outro de uma forma total. A descentração não existe, antes é promovida uma óbvia ideia do que se merece que se resume ao outro.

O sentir é todo o universo e a posse do outro é imperativo. Quando o corte acontece não há espaço para a racionalização. O querer viver em desespero é a condição existencial quase definitiva. Contudo, as cartas são uma forma de expiação do sofrimento, são motivadas por tentativas catárquicas de procura de alguma significação, como se a palavra ajudasse à compreensão do absurdo que é o amor romântico não correspondido.

Torna a afirmar Mariana:

Mas, antes de te deixares dominar por uma grande paixão, pensa bem no excesso das minhas dores, na incerteza dos meus projetos, na diversidade dos meus arroubos, na extravagância das minhas cartas, nas minhas confianças, nos meus desesperos, no meu ciúme! Olha que vais ser um desgraçado! Conjuro-te a que aproveites alguma coisa do estado em que me encontro e que ao menos o que sofro por ti seja de alguma utilidade!

 O acentuado desespero leva Mariana a conceber a possibilidade de entrar em comunhão de prejuízo com o seu amado. A sua alma mater, residente então em França, fá-la desejar que lhe aconteça o mesmo sofrimento, a mesma privação. Apesar de tentar que o seu desespero possua uma certa utilidade pedagógica, Mariana transmite a regra de ouro cristã de «não fazer ao outro o que não gostarias que fizessem contigo», ou pelo menos, que se forme no seu amado uma espécie de arrependimento pela tomada de consciência daquilo que promoveu a partir, possivelmente, do inicial amor cortês, não fosse o pretendente um digno oficial de cavalaria.

A fragilidade imensa que vivia – sim, porque quando falamos de amor queremos designar que nada posso sozinho - levou Mariana a descobrir nas andanças de cavaleiro uma projeção de domínio, respeito pela palavra dada – houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita[1]  -, dever de gratidão, hospitalidade, tudo características do amor cortês que certamente fizeram despertar em Mariana a proteção face ao abandono a que estava votada pela sua família. E quanto mais consciência tinha do afastamento mais encontrava a razão do próprio amor no sofrimento, levando-a a afirmar ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda, como se o seu destino fosse mesmo esse, como a descrença num retorno alimentasse a esperança desencantada, sugerindo a determinado passo que se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me finalmente, como se a distância projetasse um desenlace de profundo abandono depois de se ter entregado de um modo total. Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. Repare-se na inscrição exata do tempo e na memória fotográfica dos momentos. Na segunda carta, Mariana surge como uma desencantada, perguntado ter-me-ás  deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim![2] O desfecho parece ser inevitável, mas sempre com a esperança renovada, porque é a esperança que alimenta o amor romântico, na crescente ausência e no encantamento da memória da consumação do amor. O mundo do amor romântico é único e a sua unicidade parte da presunção de um acesso especial (contra tudo e todos em nome do amor) à integridade, ao estado de pureza original, onde a natureza e o humano se confundem. Mariana começa a ter noção do adiamento do paraíso, do eterno sonho como que confinados a um espaço a tudo alheio e incólume a qualquer interferência contaminante, por isso pergunta, como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim? É a exigência da anulação do «eu» e à exaltação do «nós», como fundidos numa única entidade que repele o excesso de individuação e clama a união. 

O amor romântico antecipou a importância da linguagem no amor. Os volúveis circuitos cerebrais para o amor romântico são caprichosos por desígnio da natureza.[3] De um ponto de vista naturalista, não encontraríamos qualquer razão para sofrer. Mas também por capricho da natureza encontramos mecanismos de expansão do amor e, inevitavelmente, do sofrimento. Neste também há capricho, fundamentalmente linguístico. Melhor estaríamos se Mariana mostrasse a linguagem do Eros[4], ficamo-nos pela imaginação porque o pudor assim o exigia. Contudo, a linguagem serve para tudo, para a verdade e para a mentira. O maior receio de Mariana é que o Eros de Chamilly tenha sido meandroso e enganador: Esta ideia mata-me, e morro de  terror ao pensar que  nunca  te  houvesses  entregado  completamente  aos  nossos  prazeres.  Sim, reconheço agora a falsidade do teu arrebatamento[5][…]  Enganaste-me sempre que falaste   do   encantamento   que   sentias   quando   eslavas   a   sós   comigo. Porque foi Mariana enganada? Por que razão Mariana abandonou a realidade. Marginalizando as questões práticas? Porque o amor romântico substitui o corpo pela palavra, fazendo esquecer o quotidiano. A própria Mariana afirma «perdi  a  reputação,  expus-me  à  cólera da  minha família, à severidade das leis deste país para com as freiras, e à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males.[6]»

Que há de ser de mim?, pergunta Mariana na 3ª carta. Na 4º constata que está mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste, para rematar na 5ª carta Hei de ser toda a vida uma desgraçada!

O amor em particular e a afeição em geral resultam comummente na procura do abrigo[7], da segurança, onde resulta um prazer pela vida. Não é só na textura e luminosidade da pele que transparece a aceitação do outro, é também no encontro com o sentido da vida, onde tudo ganha significado pelo facto de não a compreendermos. O amor romântico é assim. Assemelha-se a um estado de inebriamento, a uma letargia por se ter finalmente encontrado o sentido disto tudo. Acima de tudo, Mariana quis acreditar que ambos caminhavam lado a lado, a reciprocidade de afeto seria possível, a plenitude corporal que combinava os interesses comuns era um facto. Na 5ª carta, Mariana começa a racionalizar a situação, constata que o seu amor de perdição a levou a tomar excessos que resultaram em catástrofe para a nossa capacidade de aprender o amor e desenvolver relações saudáveis. Contudo, o amor romântico é o apelo da angústia e agonia, estados existenciais fundamentais para melhor amarmos. Felicidades para Mariana.



[2] 2ª carta.

[3] Hellen Fisher, «Porque amamos? A evolução do amor Romântico», Porque Amamos: A Natureza e a Química do Amor Romântico, Lisboa, Relógio D’Água, 2008

[4] Ver Steiner, As Livros que Nunca Escrevi, Gradiva, 2008

[5] Carta 3

[6] Carta 3

[7] Bertrand Russel, A Conquista da Felicidade, Guimarães Editora, Lisboa, pág 181 e ss.


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Questões de Exame - Arte


1ª fase 2020
9. O facto de, em muitas obras de arte, os artistas terem fingido sentir o que realmente não sentiram pode ser usado como uma objeção à definição
(A) formalista da arte.
(B) representacional da arte.
(C) histórica da arte.
(D) expressivista da arte.

1ª fase 2020
10. Apenas os defensores das teorias essencialistas da arte consideram que
(A) há condições necessárias e suficientes para que um objeto seja arte.
(B) a arte pode ser definida.
(C) há propriedades intrínsecas dos objetos que os tornam obras de arte.
(D) a arte é essencial à vida.

2021, 1ª fase, V1

7. Que teoria permite classificar como arte qualquer objeto que seja intencionalmente produzido por alguém, de modo a ser encarado como o foram as obras de arte preexistentes?

(A) Teoria institucional.

(B) Teoria histórica.

(C) Teoria expressivista.

(D) Teoria representacional.

https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/11ano/2021-1fase/Filosofia-Criterios.pdf


2021, 1ª fase, V1

 

8. Leia o texto seguinte.

As pessoas sentimentais [...] consideram uma heresia que alguém não participe nas revoluções e tumultos do coração, que elas encontram em toda e qualquer peça musical e de que sinceramente participam. Caso não se participe, passa-se então por ser manifestamente «frio», «insensível», «de natureza intelectual». […] O leigo e o sentimental costumam perguntar de bom grado se uma música é alegre ou triste […]. Mas, a partir do momento em que se utiliza a música apenas como meio para fomentar em nós uma certa disposição de ânimo [...], a música cessa de atuar como arte.

E. Hanslick, Do Belo Musical, Lisboa, Edições 70, 2002, pp. 81-84. (Texto adaptado)

 

No excerto transcrito, há uma crítica da ideia de que a arte musical

(A) é essencialmente expressão de emoções.

(B) pode deixar de ser uma arte.

(C) tem uma natureza intelectual.

(D) é essencialmente forma significante.

 

https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/11ano/2021-1fase/Filosofia-Criterios.pdf


2022, 1ª fase

16. Leia o texto seguinte. Se uma forma representativa tiver algum interesse, é como forma, e não como representação. O elemento representativo numa obra de arte pode ou não ser prejudicial; é sempre irrelevante. C. Bell, Arte, Lisboa, Texto & Grafia, 2009, p. 31. (Texto adaptado)

 Concorda com a perspetiva apresentada no texto? Na sua resposta, deve:

−− formular o problema considerado no texto;

 −− identificar a perspetiva defendida no texto;

−− apresentar inequivocamente a sua posição acerca da perspetiva defendida no texto;

−− argumentar a favor da sua posição.

 

Critérios: https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/11ano/2022-1fase/Filosofia-Criterios.pdf



2.ª fase 2022
16. Distinga as definições essencialistas da arte das definições não essencialistas da arte.


2023, 1ª fase

9. A teoria formalista da arte é incompatível com a ideia de que 
(A) qualquer obra de arte tem de veicular uma mensagem. 
(B) a arte tem uma natureza objetiva. 
(C) a arte produz alguma emoção em quem a reconhece. 
(D) nem todos estão aptos a apreciar a arte. 

10. O problema da definição da arte pode ser formulado do modo seguinte. 
(A) Quais são as propriedades estéticas que tornam as obras de arte valiosas? 
(B) Quais são as características essenciais das obras-primas? 
(C) Quais são os critérios que permitem distinguir a boa arte da má arte? 
(D) Quais são as condições necessárias e suficientes da arte? 

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5. Selecione a opção que refere definições de arte de acordo com as quais a intenção do artista ao produzir um dado objeto é indispensável para que esse objeto seja arte.
(A) Definições expressivista e formalista. 
(B) Definições expressivista e histórica.
(C) Definições institucional e histórica. 
(D) Definições institucional e formalista. 

Critérios: https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/11ano/2023-2fase/Filosofia-Criterios.pdf

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6. Admitir a existência do artista isolado, que cria solitariamente arte que só ele conhece, é incompatível com a perspetiva 
(A) representacional da arte, pois mais ninguém poderia saber o que representam as obras desse artista. (B) histórica da arte, pois tal artista não faria parte da história da arte. 
(C) institucional da arte, pois tal artista não faria parte do mundo da arte. 
(D) formalista da arte, pois mais ninguém sentiria emoção estética perante as obras desse artista.

Critérios: https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/11ano/2023-2fase/Filosofia-Criterios.pdf
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2023-2024 1.ª fase

16. Atente no que escreve o filósofo da arte George Dickie. O mundo da arte não requer procedimentos rígidos; admite, encoraja mesmo, a frivolidade e o capricho, sem sacrificar a seriedade dos seus objetivos. G. Dickie, «O que é a arte?», in C. d’Orey (org.), O Que É a Arte?, Lisboa, Dinalivro, 2007, p. 118. (Texto adaptado) 

O autor refere um conceito fundamental da perspetiva institucional da arte. Caracterize-o.

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quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Sentido da Existência




Perspetiva não religiosa pessimista:


A vida é um absurdo.
A teoria pessimista:
A existência humana é absurda. Nada do que fazemos faz sentido. Caso desapareçamos amanhã, isso não faz qualquer significado.
O argumento da morte:
A morte é um corte com tudo aquilo que nos esforçamos por alcançar. Dado que a morte nos impede de alcançar, a nossa existência é absurda.
O Argumento do Tédio: 
A nossa vida é feita por uma sucessão de realizações que, logo após a execução de cada uma, perdem logo o interesse. Assim, nenhumas das realizações são importantes. 

A resposta religiosa:


A vida só tem sentido a partir de Deus.
O argumento do propósito: 
Deus dá sentido à nossa existência porque lhe dá um propósito ou finalidade de valor. O ser humano foi criado por Deus por isso a vida tem um objectivo, seja ele qual for, proposto por Deus.
O argumento da eternidade:
Caso Deus não garantisse a eternidade, a vida não teria sentido. Caso Deus não garantisse a eternidade, tudo o que realizamos com esforço teria sido em vão.

Perspetiva não religiosa otimista:


A vida tem sentido se as acções forem uma entrega a actividades de valor genuíno.


O argumento da entrega e do valor genuíno: 
Se a nossa vida for uma entrega a atividades de valor genuíno, então tem sentido. A vida só terá sentido quando se executam tarefas que contribuam, pela entrega e paixão com que se executam, para o desenvolvimento do ser humano.



Deus existe?


Provas da existência de Deus
Argumentos
Objeções
Argumento Cosmológico
Todas as coisas neste mundo são causadas.
Nenhuma coisa é causa de si mesma.
Tudo o que é causado é causado por outra coisa.
Não pode haver regressão infinita.
Tem que existir uma causa primeira.
Deus é a causa primeira.

Para inferir a causa de algo necessitamos de informação sobre o que lhe deu origem. Para sabermos a causa do relógio devemos possuir informação suficiente sobre o que deu origem ao relógio. Quanto à origem do universo, pouco sabemos. Se tudo tem uma causa, não podemos asseverar que haja algo que cause sem ser causado

Argumento do Desígnio
Os organismos vivos são muito idênticos aos relógios ou a outra máquina humana.
O relógio teve que ser criado por alguém inteligente.
Portanto, também o universo tem um criador inteligente que é Deus.
Quando falam acerca do relógio, possuímos um conhecimento de fundo sobre o que causa o relógio. Contudo, relativamente ao universo, não temos informação relevante.


Mesmo se o universo tenha sido criado por Deus, ser omnipotente e perfeito, dificilmente aceitaríamos a imperfeição do mundo.

Argumento Ontológico.
A ideia de que Deus é um ser necessário.
Se Deus é perfeito, então tem necessariamente de existir. Afinal, se não existisse não seria perfeito. Se é perfeito é tudo, incluindo a existência.
Se este argumento prova que Deus existe, também prova que uma ilha perfeita existe. Podemos imaginar uma ilha perfeita que não implica necessariamente a sua existência. Do mesmo modo, a definição de Deus diz-nos apenas que tipo de ser seria Deus se existisse.


A arte no poema Calçada de Carriche.

Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a cal...