O presente trabalho tem por
objetivo mostrar que não será possível construir uma noção apriorista da
ciência, puramente conceptual. Ao invés, é importante construirmos uma noção
global das condições espirituais e materiais que permitiram desenvolver uma
ideia de ciência. Por outras palavras, para aferirmos uma perspetiva
epistemológica é imprescindível introduzirmos um estudo empírico das condições
abrangentes que permitiram o desenvolvimento do conhecimento científico, sem
omitirmos a ideia fundamental que subjaz a qualquer conhecimento: a ideia de
natureza.
Antes de mais, convém apresentar
algumas considerações que incentivam o diálogo interdisciplinar. O que a
História traz à Filosofia e o que esta pode fornecer de útil à História.
É difícil enquadrar o fenómeno
científico numa lógica de pureza conceptual. A ideia de ciência repousa em
histórias e têm a grande maioria das vezes uma origem irracional. Não
pretendemos replicar aqui a ideia de «Adeus à Razão» de Feyerabend. Até porque
a racionalidade é a justificação da Filosofia. Contudo, também é vedada a
possibilidade de rigor se construir uma Filosofia puramente analítica, sem a
vertente cultural. Como afirma John Gray (2008, Sobre Humanos e outros Animais),
caso Popper e o seu critério falsificacionista fosse implementado, dificilmente
Darwin e Einstein e respetivas teorias teriam sido acolhidas (pág. 33). Esta
ideia remete-nos para uma distinção que, por vezes, é leviana: facto e valor. O
que determina o que um facto, não serão os valores?
Putnam (Hilary Putnam, Razão,
Verdade e História, Publicações D. Quixote, 1ª edição 1992, p.168), enfatiza a
ideia de o facto, ou o que consideramos ser um facto, é determinado por valores.
Por isso, quando afirmamos que o único objetivo da ciência é obter a verdade
pretendemos acrescentar que «a verdade não é o fundo da questão: a própria
verdade obtém a sua vida dos nossos critérios de aceitabilidade racional, e
estes são aquilo que devemos olhar se quisermos descobrir os valores que estão
realmente implícitos na ciência.» Sem esta conceção de racionalidade – que nos
fornece «os padrões que nos dizem quando devemos e quando não devemos aceitar
enunciados» (p.177) - não é possível afirmarmos que algo é um facto. Resumindo,
não é possível estabelecermos o que se estuda, como deve ser estudado, sem
percebermos as razões que nos levam a estudar. Perceber esta dinâmica, é
perceber como deve ser feito o diálogo entre Epistemologia e a História.
Um período histórico apropriado para esta
análise corresponde ao surgimento do designado modernismo. Será que podemos
estabelecer uma dicotomia como à partida a feliz expressão de João Maria André
(1987) parece indicar: a passagem do poder da magia para a magia do poder?
Teria sido o misticismo associado à alquimia e às crenças religiosas
completamente banido? Teria sido este o período onde definitivamente se
cortaria com a tradição?
A Natureza é o campo pródigo para
a descoberta desta intrincada relação entre os factos e os valores. Associada à
Natureza está a ideia que lhe é atribuída. Não existe natureza a não ser a
partir das tentativas que fazemos para a interpretar. A ciência é um valor
entre outros. Como refere Robert Lenoble (História
da Ideia de Natureza, edições 70, pág. 31), Existe a natureza do sábio, do
artista, da ciência, e não é possível perceber a dinâmica interpretativa de
cada uma sem perceber a unidade. Mais à frente afirma que «a imparcialidade da própria ciência é uma conquista moral e uma visão
estética».
Uma das mais expressivas ideias
desta modernidade mecanicista está na substância cartesiana da Res Extensa.
Esse princípio é interpretado muitas vezes como a definitiva mensagem de que no
mundo existe um mero mecanismo em que tudo pode ser mensurado e quantificado.
Deste modo, estaria conseguido o tão almejado poder do homem na compreensão da
natureza e o seu respetivo domínio. Contudo, o poder valorativo estava presente
neste facto. O que Descartes pretendeu foi demonstrar o poder de Deus e
descrever como Deus teria criado e mantido o mundo. Um bom exemplo de como o
facto derivou do valor. Teria Galileu querido desmistificar a ideia de mundo,
depois de ter adquirido as lentes da arte dos artesãos holandeses, ao afirmar
em surdina «que, apesar de tudo, eles movem-se»? Galileu via-se a si próprio
como defensor da Teologia e não como um inimigo da igreja (John Gray, pág. 33).
Newton concebeu as leis da «sua» física com a intenção de inscrevê-las na intencionalidade
divina, na tentativa de descrever a ordem divina. Ignorar as metodologias
científicas foi o caminho que promoveu a ciência tal como nós atualmente a
conhecemos. Mas, por que razão buscamos o conhecimento? Por que razão
consideramos importante o conhecimento? Sócrates é a ideia chave, foi ele que
identificou a crença mais legitimada pela história do pensamento ocidental, a
de que o conhecimento significa liberdade. É factual que ele o tenha afirmado, contudo é
da ordem do valorativo que sigamos a máxima.
Bem sabemos o quão problemático se torna para o filósofo descobrir as nuances pessoais e irracionais do pensamento, neste caso científico. A sua pretensão é a objetividade, ele procura o que de universal existe na particularidade e de necessidade na contingência. Porém, aí haverá mais um motivo para o enriquecimento mútuo. A História fornece a matéria prima, a Filosofia a forma e rigor conceptuais. Talvez Hegel, no interior da sua idealista filosofia, quisesse dizer o mesmo com o Volksgeist e o Weltgeist, onde só compreenderíamos o universal pela expressão lógica do particular, onde fosse possível identificar o necessário pelo vislumbre do contingente, ou mesmo Antero, no escrutínio das Tendência Gerais, em que realça a Filosofia como potência infinita (no sentido interpretativo do todo) e ato limitado (circunscrita à sua época e circunstância temporal e histórico). Assim, cremos, devemos construir uma epistemologia.
António Daniel Fernandes Pereira da Costa