segunda-feira, 2 de agosto de 2021

O Tempo Linear. A Europa entre Jerusalém e Atenas

 


http://frontdaciencia.blogspot.com/2018/06/termodinamica-quantica-e-seta-do-tempo.html

A Ruína ensinou-me assim a meditar:

Que o tempo chegará e levará o meu amor.

Este pensamento é como uma morte que não pode escolher

Mas chora para ter o que teme perder.

                               Sheakespear, Soneto 64, 11-14

 

Qual o sentido do tempo para a Europa em particular e para o mundo ocidental em geral? Qual a crença básica do tempo que lhe preside? Será mais Atenas ou Jerusalém? São estas as questões que procuraremos responder de seguida. 

O sentido geral de uma ideia de Europa pode ser escrutinado pelos inúmeros atos, pensamentos e acontecimentos que suscitaram ideias escatológicas[1]. A ideia de Fim está de modo permanente inscrito no pensamento europeu pela nomenclatura da religião abraâmica. A Escatologia cristã tem uma identidade. Caracteriza-se pela esperança num mundo diferente. Algo novo, algo melhor onde o tempo é sem tempo, a eternidade. O fim dos tempos cheios de vida já se faz no presente. É a expressão da Ressureição que deixa marcas eternas no tempo presente. O cristão vive por antecipação a eternidade. Contudo, a escatologia europeia tem laivos de catástrofe. Nas janelas dos tempos europeus espreita-se teimosa e simultaneamente o Antigo e Novo Testamento.

A Europa foi construída pelo sangue. As guerras sucessivas desenharam-na. As guerras mundiais foram guerras civis europeias. Os balcãs até recentemente o evidenciaram. Sempre houve uma predilecção suicida da Europa. Ou então uma tentativa de sobreposição de culturas. O volkgeist hegeliano materializou-se num weltgeist culturalmente transversal. Seria uma arte concreta, um país concreto, uma política concreta. Seria o fim, onde o espírito se unificaria e confundia com o real. No mesmo sentido se predispôs Marx. Nos momentos revolucionários, a infraestrutura impunha-se, determinando a superestrutura no sentido de um encontro com o fim da Revolução do Proletariado através das contradições do capitalismo. Porém, os fins idealizados haviam sido, por vezes, acompanhados de catástrofe, o pessimismo de Krauss expressa o Apocalipse presente em vários momentos da história, mas sempre «Now» no sentido de Kubrick. Os Gulags e os Campos de Concentração permitiram entrever a catástrofe. Novos conceitos surgem, o Bug do milénio e a expectativa do fim sem retorno vivido de um modo lúdico. Hoje, a expetativa é vivida no conforto dos lares como se fossemos invencíveis e o apocalipse não nos afetasse. Eis um senão. Nos confins da Ásia abriu-se uma fenda na esperança. A epidemia recorda-nos a gripe que fora espanhola, assim como as medievais pestes. O Bug é físico e imaterial, o vírus é visível em microscópio, mas também nas ondas eletromagnéticas e nos algoritmos do nosso conforto. Pontualmente emerge o Antigo Testamento como forma de nos prevenir da finitude e fragilidade existente na aparente invencibilidade da evolução imparável da técnica e da ciência.  Os incontáveis momentos apocalípticos vividos sempre serviram para nos reposicionarmos no mundo e, acima de tudo, no tempo. No tempo consciente existe um eterno presente, como se cada geração correspondesse ou um infortúnio ou a uma fortuna. Pensemos atualmente e verificamos que a Europa vive esse presente que nunca foi tão afortunado. Como entender os reveses como a crise pandémica? Como justificar a ação?

Quando a realidade se impõe ao sono prazeroso, o medo reposiciona-nos no tempo e no espaço, serve como recurso pedagógico no sentido de tomamos consciência da finitude e da imensa fragilidade. O que faz a nossa civilização? Refugia-se na Atenas racional ou nas crenças milenaristas. Relativamente a estas últimas, Agostinho desmitificou-os[2], por isso o apocalípse fora reinterpretado como momentum, ocasião para reflectirmos sobre a história. Eis a interpretação do tempo de Jerusalém e de Sinai. A Seta do Tempo vê o sentido historicista da vida humana, do tempo cheio de propósito. A dialética da história é subsidiária do cristianismo e judaísmo. É de difícil execução criar um hiato entre a definição da humanidade no diálogo com o transcendente e a criação da modernidade. Os filósofos da suspeita, com exceção de Nietzshe, beberam da ideia messiânica da história, como bem se vislumbra em Marx ou Comte, e da queda de Adão inscrita no complexo de Édipo freudiano[3].

O Cristianismo surge como repositório da luta que o judaísmo encetou com a tradição helénica. Relembrando Agostinho, existem três tempos, a saber, lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras[4]. Por isso, no que ao tempo diz respeito, somos mais Jerusalém e menos Atenas, e mesmo aí somos mais cristãos que judeus. O Cristianismo bebe do judaísmo, mas foi além dele, correspondendo à necessidade de popularizar e universalizar a ideia de criação absoluta do mundo[5], onde todos e não somente os eleitos tivessem o seu momento salvífico e eterno. No embate com o período helénico, os cristãos não podiam comungar de uma visão cíclica do cosmos. A principal dificuldade prendia-se com a ideia de criação e com ela a ideia de fim, assim como a plena necessidade do cristianismo fundar o livre arbítrio como essência humana. O Eterno Retorno, destruiria a noção de pecado e de redenção, com a consequente noção de sanção divina, de sacrifício e ressurreição. Seria inconciliável a eterna repetição de todas as situações com a datação bíblica e os respectivos acontecimentos. Moisés só por uma vez guiou o povo prometido, só por uma ocasião Judas traiu Jesus[6].

Com o aparte do sentido pagão do Eterno Retorno recuperado por Nietzsche, um epifenómeno na imensidão evolucionista, a Europa fez-se com a ideia de Haeckel, Spencer e Darwin. A emergência da ideia de tempo linear e a evolução intelectual que impôs sustentaram a ciência moderna e a sua promessa de melhor vida na terra[7]. O evolucionismo encontrou terreno fértil na ciência, filosofia e arte. O optimismo foi o protagonista na Exposição Universal de novecentos. O ferro, a par das recentes invenções tecnológicas, penetrava nos espíritos mais afoitos como Marinetti ou Almada. A reinvenção da língua no acompanhamento da velocidade e o desmantelamento da tradicional sintaxe impunha-se em textos como a Engomadeira, mas também na revista Orpheu, com o epíteto de Triunfal, Pessoa expôs a sua Ode [8]. Os milénios são meros momentos, numerologias à parte, mas que promovem catarses e tomadas de consciência do progresso.

Como já havíamos afirmado, o Cristianismo e o judaísmo inventaram a seta do tempo, a ideia de linearidade, assim a ideia de começo e de fim. É inquestionável a ação das grandes religiões na definição do tempo, e ainda mais no tempo histórico. As manifestações humanas não existem singularmente, mas manifestam-se coletivamente. A própria memória se faz por filtros e a mundividência judaica e cristã funcionaram como filtros. Decidiam o que se deve lembrar e o que se deve esquecer. E o que se deve lembrar para a religião cristã é a redenção do fim que ele mesmo é um começo. Independentemente de se ser crente ou não, é inolvidável a influência que o cristianismo imprimiu na visão do mundo e do tempo. Aliás, o mundo é tempo e o tempo é o mundo.

 

Mafra, 31/7/2021

António Daniel Fernandes Pereira da Costa



[1] Ver George Steiner, A Ideia de Europa, Gradiva, página 42.

[2] Umberto Eco, O Fim dos Tempos, Terramar, pág. 209.

[3] George Steiner, op cit, página 40.

[4] Santo Agostinho, Confissões, Livraria do Postulado da Imprensa, 11º edição, página 309.

[5] Raul Proença, O Eterno Retorno, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1987, pág.177.

[6] Idem, página 180.

[7] Peter Coveney, Roger Highfield, A Seta do Tempo, trad. Maria Pinhão, Forum Ciência, Publicações Europa-América, página 26.

[8] Fernando Pessoa, «Ode Triunfal», in Orpheu, edição facsimilada, Contexto,1989, pág. 76.