A Ruína
ensinou-me assim a meditar:
Que o tempo
chegará e levará o meu amor.
Este
pensamento é como uma morte que não pode escolher
Mas chora
para ter o que teme perder.
Sheakespear,
Soneto 64, 11-14
Qual o sentido
do tempo para a Europa em particular e para o mundo ocidental em geral? Qual a
crença básica do tempo que lhe preside? Será mais Atenas ou Jerusalém? São
estas as questões que procuraremos responder de seguida.
O sentido geral
de uma ideia de Europa pode ser escrutinado pelos inúmeros atos, pensamentos e
acontecimentos que suscitaram ideias escatológicas[1].
A ideia de Fim está de modo permanente inscrito no pensamento europeu pela
nomenclatura da religião abraâmica. A Escatologia cristã tem uma identidade.
Caracteriza-se pela esperança num mundo diferente. Algo novo, algo melhor onde
o tempo é sem tempo, a eternidade. O fim dos tempos cheios de vida já se faz no
presente. É a expressão da Ressureição que deixa marcas eternas no tempo
presente. O cristão vive por antecipação a eternidade. Contudo, a escatologia
europeia tem laivos de catástrofe. Nas janelas dos tempos europeus espreita-se teimosa e simultaneamente o Antigo e Novo Testamento.
A Europa foi
construída pelo sangue. As guerras sucessivas desenharam-na. As guerras
mundiais foram guerras civis europeias. Os balcãs até recentemente o
evidenciaram. Sempre houve uma predilecção suicida da Europa. Ou então uma
tentativa de sobreposição de culturas. O volkgeist hegeliano materializou-se
num weltgeist culturalmente transversal. Seria uma arte concreta, um país
concreto, uma política concreta. Seria o fim, onde o espírito se unificaria e
confundia com o real. No mesmo sentido se predispôs Marx. Nos momentos
revolucionários, a infraestrutura impunha-se, determinando a superestrutura no
sentido de um encontro com o fim da Revolução do Proletariado através das
contradições do capitalismo. Porém, os fins idealizados haviam sido, por vezes,
acompanhados de catástrofe, o pessimismo de Krauss expressa o Apocalipse
presente em vários momentos da história, mas sempre «Now» no sentido de
Kubrick. Os Gulags e os Campos de Concentração permitiram entrever a
catástrofe. Novos conceitos surgem, o Bug do milénio e a expectativa do fim sem
retorno vivido de um modo lúdico. Hoje, a expetativa é vivida no conforto dos
lares como se fossemos invencíveis e o apocalipse não nos afetasse. Eis um
senão. Nos confins da Ásia abriu-se uma fenda na esperança. A epidemia
recorda-nos a gripe que fora espanhola, assim como as medievais pestes. O Bug é
físico e imaterial, o vírus é visível em microscópio, mas também nas ondas
eletromagnéticas e nos algoritmos do nosso conforto. Pontualmente emerge o Antigo
Testamento como forma de nos prevenir da finitude e fragilidade existente na
aparente invencibilidade da evolução imparável da técnica e da ciência. Os incontáveis momentos apocalípticos vividos
sempre serviram para nos reposicionarmos no mundo e, acima de tudo, no tempo.
No tempo consciente existe um eterno presente, como se cada geração
correspondesse ou um infortúnio ou a uma fortuna. Pensemos atualmente e
verificamos que a Europa vive esse presente que nunca foi tão afortunado. Como
entender os reveses como a crise pandémica? Como justificar a ação?
Quando a
realidade se impõe ao sono prazeroso, o medo reposiciona-nos no tempo e no
espaço, serve como recurso pedagógico no sentido de tomamos consciência da
finitude e da imensa fragilidade. O que faz a nossa civilização? Refugia-se na
Atenas racional ou nas crenças milenaristas. Relativamente a estas últimas,
Agostinho desmitificou-os[2],
por isso o apocalípse fora reinterpretado como momentum, ocasião para reflectirmos sobre a história. Eis a
interpretação do tempo de Jerusalém e de Sinai. A Seta do Tempo vê o sentido
historicista da vida humana, do tempo cheio de propósito. A dialética da
história é subsidiária do cristianismo e judaísmo. É de difícil execução criar
um hiato entre a definição da humanidade no diálogo com o transcendente e a
criação da modernidade. Os filósofos da suspeita, com exceção de Nietzshe,
beberam da ideia messiânica da história, como bem se vislumbra em Marx ou
Comte, e da queda de Adão inscrita no complexo de Édipo freudiano[3].
O Cristianismo
surge como repositório da luta que o judaísmo encetou com a tradição helénica. Relembrando
Agostinho, existem três tempos, a saber, lembrança
presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança
presente das coisas futuras[4].
Por isso, no que ao tempo diz respeito, somos mais Jerusalém e menos Atenas, e
mesmo aí somos mais cristãos que judeus. O Cristianismo bebe do judaísmo, mas
foi além dele, correspondendo à necessidade de popularizar e universalizar a
ideia de criação absoluta do mundo[5],
onde todos e não somente os eleitos tivessem o seu momento salvífico e eterno. No
embate com o período helénico, os cristãos não podiam comungar de uma visão
cíclica do cosmos. A principal dificuldade prendia-se com a ideia de criação e
com ela a ideia de fim, assim como a plena necessidade do cristianismo fundar o
livre arbítrio como essência humana. O Eterno Retorno, destruiria a noção de
pecado e de redenção, com a consequente noção de sanção divina, de sacrifício e
ressurreição. Seria inconciliável a eterna repetição de todas as situações com
a datação bíblica e os respectivos acontecimentos. Moisés só por uma vez guiou
o povo prometido, só por uma ocasião Judas traiu Jesus[6].
Com o aparte do
sentido pagão do Eterno Retorno recuperado por Nietzsche, um epifenómeno na
imensidão evolucionista, a Europa fez-se com a ideia de Haeckel, Spencer e
Darwin. A emergência da ideia de tempo
linear e a evolução intelectual que impôs sustentaram a ciência moderna e a sua
promessa de melhor vida na terra[7].
O evolucionismo encontrou terreno fértil na ciência, filosofia e arte. O
optimismo foi o protagonista na Exposição Universal de novecentos. O ferro, a
par das recentes invenções tecnológicas, penetrava nos espíritos mais afoitos
como Marinetti ou Almada. A reinvenção da língua no acompanhamento da
velocidade e o desmantelamento da tradicional sintaxe impunha-se em textos como
a Engomadeira, mas também na revista Orpheu, com o epíteto de Triunfal,
Pessoa expôs a sua Ode [8].
Os milénios são meros momentos, numerologias à parte, mas que promovem catarses
e tomadas de consciência do progresso.
Como já havíamos
afirmado, o Cristianismo e o judaísmo inventaram a seta do tempo, a ideia de
linearidade, assim a ideia de começo e de fim. É inquestionável a ação das
grandes religiões na definição do tempo, e ainda mais no tempo histórico. As
manifestações humanas não existem singularmente, mas manifestam-se
coletivamente. A própria memória se faz por filtros e a mundividência judaica e
cristã funcionaram como filtros. Decidiam o que se deve lembrar e o que se deve
esquecer. E o que se deve lembrar para a religião cristã é a redenção do fim
que ele mesmo é um começo. Independentemente de se ser crente ou não, é inolvidável
a influência que o cristianismo imprimiu na visão do mundo e do tempo. Aliás, o
mundo é tempo e o tempo é o mundo.
Mafra, 31/7/2021
António Daniel
Fernandes Pereira da Costa
[1] Ver
George Steiner, A Ideia de Europa, Gradiva,
página 42.
[2] Umberto
Eco, O Fim dos Tempos, Terramar, pág.
209.
[3] George
Steiner, op cit, página 40.
[4] Santo
Agostinho, Confissões, Livraria do
Postulado da Imprensa, 11º edição, página 309.
[5] Raul
Proença, O Eterno Retorno, Biblioteca
Nacional, Lisboa, 1987, pág.177.
[6] Idem,
página 180.
[7] Peter
Coveney, Roger Highfield, A Seta do
Tempo, trad. Maria Pinhão, Forum Ciência, Publicações Europa-América,
página 26.
[8] Fernando
Pessoa, «Ode Triunfal», in Orpheu,
edição facsimilada, Contexto,1989, pág. 76.