quinta-feira, 2 de junho de 2011

«As Botas» de Van Gogh - Texto de M. Heidegger




A partir da pintura de Van Gogh, não podemos sequer estabelecer onde se encontram estes sapatos. Em torno deste par de sapatos de camponês, não há nada em que integrem, a que possam pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de terra do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia...
Na escura abertura do interior dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se sentem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a fertilidade e humidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta de trigo amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É a partir desta abrigada pertença que o produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo.
[...] Mas será que o que queremos dizer é que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de camponês que realmente está aí, e é uma obra que consegue fazê-lo? De modo nenhum. Portanto, na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está aí presente que se trata, mas sim da essência geral das coisas.

M. Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Ed. 70, Lisboa, pp. 27 – 28

O Tema da Estética: O Belo IV

O truísmo mais evidente é o relativo ao juízo de gosto que consiste no acto mediante o qual formulamos uma proposição que atribui determinada qualidade estética (beleza, sublimidade, fealdade) a um objecto.

O que desencadeia esse juízo de gosto?
1. Objectivismo
Tese: Dizemos que um objecto é belo em virtude das suas propriedades intrínsecas e independentemente do que sentimos quando o observamos. Dizer «a catedral de Milão é bela» é diferente de dizer «gosto da catedral de Milão»
Argumento: Se não houvesse características objectivas não era possível qualquer consenso alargado acerca da beleza ou fealdade de um objecto.
2. O Subjectivismo
Tese: Dizemos que um objecto é belo em virtude do que sentimos quando o observamos. O juízo estético depende exclusivamente do sujeito.
Argumento: A beleza decorre de um juízo de gosto, isto é, depende dos sentimentos de prazer do observador. Dizer «x é belo» é o mesmo que dizer «gosto de x».

Possibilidades de resolver esta aparente dicotomia:
Segundo David Hume existe um padrão de gosto: qualquer pessoa atenta sabe distinguir uma obra de Eça de Queirós de uma obra de José Saramago.
• Assim, de acordo com Hume, dizer que «x é belo» é o mesmo que dizer que «gosto de X» porque está de acordo com o padrão de gosto.
• O padrão de gosto é formado ao longo do tempo. Há características que são naturalmente percebidas como agradáveis.
• Para compreender o padrão de gosto é necessário treino. A sensibilidade pelo belo varia consoante a delicadeza com que certos objectos são apreciados. O estético é indissociável do padrão de gosto e este é algo que se mantém ao longo do tempo. Tal com há odores a que o nosso olfacto reage naturalmente mal, Há características dos objectos que são naturalmente percebidas como agradáveis.
Remetemos para Kant um lugar de realce. Na sua Crítica da Faculdade de Julgar afirma que quando digo «este objecto é belo», esta apreciação não diz respeito a inclinações ou a desejos. Quando assim afirmo estou a ter um juízo de gosto subjectivo e, simultaneamente, universal. Não podemos dizer por que razão algo é belo, mas também não podemos dizer que as nossas avaliações sejam meras expressões de gosto.
• A questão é, pois, quando temos uma experiência estética? Como se caracteriza?
• Perante uma apreciação do estético existem duas posições: contemplativa e desinteressada.
• Mesmo esta contemplação é relativa ao objecto que está diante de nós. De qualquer forma, a experiência estética é contemplativa porque nos entregamos à percepção e isso dá--nos prazer. É desinteressada porque o prazer esgota-se nessa situação.

A arte no poema Calçada de Carriche.

Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a cal...