domingo, 8 de dezembro de 2024

A arte no poema Calçada de Carriche.



Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.




Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

 

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,


corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

 

 

 

 

António Gedeão


O problema da definição de uma obra de arte obriga-nos a apresentar as condições  necessárias e suficientes para um objeto ser considerado arte. Neste sentido, vamos procurar enquadrar o atual poema em teorias definidoras de arte, como é o caso da teoria representativa. O nosso intuito é mostrar como esta definição pode ser adotada  por se aplicar a muitos casos de objetos artísticos, apesar de não se esgotar neles nem  estes se esgotarem nesta definição. Será este poema representativo de algo? A teoria da representação considera um  objeto como arte se representar um signo, possuindo um significado e significante.  Qualquer objeto é linguagem, mas a arte é uma linguagem muito particular. O objeto  artístico tem uma natureza singular porque, no seu modo de estar aí, na sua presença  factual, na sua matéria que lhe é própria, vai para além de si mesma porque introduz  uma ideia que se quer universal. No poema de Gedeão está a mulher que por acaso se chama Luísa. Luísa é um nome comum, como comum são todas as «Luísas», poderá  até ser um nome muito comum. Esta normalidade do nome chama a atenção para a  normalidade da situação. A mulher objeto, ciente da sua presença e do seu poder,  aglomera no seu universo a singela presença de um poder que move o mundo. Ela é  simplesmente desprezada pela presença, o seu «eu» desaparece nas suas «coxas apalpadas», torna-se objeto de olhares e abusos. Ela sabe-o, mas continua na sua  permanente repetição de estados «sobe, sobe, sobe». O ritmo é dela, sobe e desce  para «dar a mamada» porque ama. Por isso, a Luísa não se importa. Mas sabe o que  mais importa: dar sem receber.  

A repetição «larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que  larga, puxa que puxa, larga que larga...», acrescentada à «sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada...» «Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada…» despersonaliza, retira o rosto, desumaniza. A Luísa na sua tarefa contínua e repetitiva não fornece espaço à ternura, ao amor e à desenvoltura; Luísa é uma personagem sem rosto, sem individualidade. E quanto mais transparece essa forma despersonalizada, mais se revela no seu desvelamento a ideia de mulher. Uma obra de arte abre um mundo, revela uma realidade que, para os comuns dos mortais, está oculta. Por isso, a  arte tem esta necessidade de desocultação, abrindo mundos, realidades através da sua  materialidade, forma, sonoridade. No caso deste poema, a dureza da palavra enforma  a leveza da mensagem, a rudeza do significante produz a beleza da ideia. «Despiu-se  à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a  deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa.» Esta é uma verdade que se  revela. «Anda Luísa», sabes perfeitamente o que queres, deixa lá o resto, ajuda-nos a desocultar a ideia que transportas. Manifesta-te como realidade exclusiva, como a  «terra» que sustenta, fornece-nos a intranquilidade das coisas. Essa é a única verdade  que interessa.

A arte no poema Calçada de Carriche.

Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a cal...