domingo, 31 de janeiro de 2021

O Processo de Escolha das Teorias Científicas.

 

I Introdução

Até há bem pouco tempo a Física mantinha o seu umbilical cordão com a Filosofia, pelo menos em termos de designação. A Filosofia Natural pressupunha essa natureza convergente do conhecimento, o seu carácter aglutinador e total. Contudo, depressa a ciência dita natural se distanciou, granjeando atenções, legítimas, diga-se, e se autopromoveu como conhecimento por excelência, permitindo o surgimento de espaços para as ciências sociais e humanas, eufemismos e apeadeiros confortáveis para a consciência dos académicos. Perante este cenário, qual o papel da filosofia? Num recente número de uma revista norte-americana, Scientific Americain (https://www.scientificamerican.com/) foi publicado um artigo da autoria de Carlo Rovelli (https://www.publico.pt/2019/11/23/ciencia/entrevista/carlo-rovelli-compreender-curvatura-espaco-tempo-quase-trip-psicadelica-1894617) cuja leitura nos remete para uma necessária simbiose entre Filosofia e Física, «Philosophy needs Physic, and Physic needs Philosophy». O autor, depois de uma breve incursão à filosofia grega, sugere-nos a dependência entre a Física e a Filosofia a partir dos primórdios da Física Quântica, afirmando que os filósofos habitualmente possuem ferramentas e habilidades (Skills) que a Física necessita e que os Físicos habitualmente não exercitam: análise conceptual, habilidade em encontrar algumas lacunas nos argumentos e procurar explicações conceptuais alternativas. Creio que o caminho poderá ser por aí para não se enfatizar os últimos desdéns votados à filosofia por Steven Weinberg, Stephen Hawking, entre outros.

Uma das clarificações e análises que o rigor filosófico pode e deve estar atento é no que diz respeito à escolha das teorias científicas, que Kuhn, Lakatos e Popper tiveram a oportunidade de desenvolver. Depois da apresentação das suas ideias, procurarei pontos de confronto e/ou convergência para, finalmente, encontrar um «porto de abrigo» que irá ao encontro da ideia de que a escolha ainda é sugerida por momentos de predominância de uma cientificidade, objectividade e racionalidade, apesar de reconhecer que esta última característica não possui a mesma conotação iluminista de universalidade.

2.       A luta Paradigmática e a resolução de Enigmas.

Na sua Obra A Estrutura das Revoluções Científicas[1], Kuhn diz ao que vem. Encetou um programa de construção histórica da ciência, um dos caminhos possíveis para alterar o modo como a ciência e os próprios cientistas se veem a si mesmos. Do percurso histórico, Kuhn vislumbrou a caraterística fundamental da ciência como processo de resolução de enigmas. Quando nos sujeitamos a resolver um enigma sabemos de antemão que tem solução. O mesmo acontece com a ciência. Perante um facto que surge no horizonte da explicação científica, considera-se que o peso heurístico do paradigma dominante bastará para assegurar a concretização do processo de investigação. No capítulo II da obra supracitada[2], são sugeridos os três focos para a investigação científica normal, que passa pela determinação do facto científico, dos casos significativos num determinado âmbito paradigmático e respectiva articulação da teoria, garantindo o rigor e a precisão. São estes os motivos que fazem da Ciência Normal, conceito primordial da epistemologia de Kuhn, um exercício conservador para a manutenção a todo o custo do Paradigma que a sustenta. Tal pode ser provado na receptividade que as teorias evolucionistas de Darwin tiveram na academia londrina. Os períodos da Ciência Normal – que consistem na institucionalização do Paradigma – regem-se pela ideia de que partimos sempre com a expectativa de resolução de um qualquer facto. Por esse motivo, a Ciência Normal testa a engenhosidade dos cientistas, determina as leis, conceitos e teorias e os Instrumentos e métodos de uso. Contudo, uma questão pode surgir, o que acontece quando surge um qualquer problema que não seja imediatamente explicado pelo paradigma dominante?

A palavra descoberta sugere que houve um momento único e uma única pessoa que a processou. Ora, Kuhn diz que a descoberta é um processo moroso. A descoberta oxigénio[3] tanto se ficou a dever a Priestley como a Lavoisier ou até a todos aqueles que contribuíram para a descoberta. Além disso, a própria constatação da existência de oxigénio não foi rapidamente aceite. Durante o séc. XVIII havia a ideia paradigmática de que todas as substâncias que se queimam têm um elemento comum: o flogisto. Foi somente com Lavoisier que se concluiu que o fenómeno da combustão deveria ser interpretado ao contrário do que ensinava a teoria flogística: em lugar de perder flogisto, elemento imaginário que não deveria existir, os corpos quando se queimam, ou se oxidam, absorvem oxigénio. A persistência da anomalia e a sua inconveniente presença, tornam a crise paradigmática em algo presente e incómoda. Como explicar as constatações darwinianas dos tentilhões à luz do criacionismo? De que modo refutar a observações de galilaicas de Vénus e de todo o movimento científico seu contemporâneo tendo como pano de fundo o geocentrismo? Num enquadramento diacrónico, é-nos fácil ridicularizar a tendências daqueles que não aceitam de imediato as novas constatações, mas Kuhn mostra que o abandono de um Paradigma é moroso e exige que um novo Paradigma possa surgir no horizonte. Aqui uma pergunta se impõe: que características deve o Paradigma emergente possuir para que seja aceite?

É comum aferirmos a ciência como uma actividade objectiva, considerando-a livre de qualquer influência valorativa ou subjectiva. Porém, para Kuhn «quando os cientistas têm de escolher entre teorias rivais, dois homens comprometidos completamente com a mesma lista de critérios para escolha podem, contudo, chegar a conclusões diferentes.»[4]. Tal constatação sugere que existem outros critérios para além da objetividade, como o critério da exactidão, da consistência, do longo alcance, da simplicidade, da fecundidade. Acrescente-se a ideia de Kuhn segundo a qual o surgimento de uma nova teoria tipicamente só surge após um fracasso na actividade normal de resolução de problemas. Uma teoria ser admiravelmente bem sucedida não significa ser totalmente bem sucedida. Existem factores internos, como a insegurança dos cientistas, o fracasso do paradigma em resolver os seus próprios problemas e factores externos que passam pelas pressões socioculturais e religiosas, que levam a supor que o surgimento de uma nova teoria necessita de larga aceitabilidade da comunidade científica que, por sua vez, não é totalmente neutra ao seu contexto sócio-cultural.

A crise do paradigma, a aplicação da ciência extraordinária como forma de resposta à persistente anomalia pode originar a revolução científica que, tal como o nome indica, promove uma mudança radical no espectro científico, evidenciando a característica de incomensurabilidade paradigmática. Que significa dizer que os paradigmas são incomensuráveis? Que os defensores de um e outro estão em conflito sobre os próprios problemas que se trata de solucionar, assim como sobre as soluções aceitáveis e que diferentes paradigmas possuem diferentes usos de noções e conceitos.

 A tese de Kuhn relativamente às escolhas das teorias é de difícil refutação. O seu quadro teórico baseia-se em pressupostos históricos como se constata nos inúmeros exemplos apresentados nas suas obras. A partir daí elabora o conceito de paradigma que está esboçado de tal forma que possui múltiplas caracterizações, desde matriz lógica, até metafísica, passando por pressupostos sociológicos e axiológicos. De tão englobante conceito facilmente pode cair em algo indefinível. Contudo, há considerações pertinentes em Kuhn. Sabemos que durante o século XIX a ideia premente transversal a todo o saber era a ideia de evolução e também de progresso. Na ciência, quase em simultâneo com o Darwinismo, surgiu a ideia de evolução de Spencer, Haeckel e outros. Do mesmo modo, na filosofia desde o idealismo alemão assim como no positivismo de Comte e Litré, o pressuposto de evolução e progresso estão presentes. De igual forma, podemos asseverar que o contexto e necessidades tecnológicas promoveram a Relatividade de Einstein. Parece, assim, indesmentível que há um ambiente que ajuda a promover uma ideia de ciência, de saber, de conhecimento e que os forma de modo indelével. Contudo, perguntar-se-á se tal legitima a ideia de relativismo e se os critérios de escolha das teorias são de facto tão «sociológicos» e até psicológicos. Kuhn parece pressupor que mais importante que as demonstrações de pureza técnica é a capacidade persuasiva dos cientistas. Parece evidente que a substituição de uma perspetiva geocêntrica por uma heliocêntrica em pleno século XVI teve de muito sociológico. As teorias quando surgem são facilmente dominadas por interesses vários que as adotam. Do mesmo modo, a resistência da ciência do século XIX relativamente às ideias evolucionistas pode ser facilmente identificada na assunção religiosa dominante. Atualmente proceder-se-á deste modo? Penso que não. Podem surgir contextos económicos e outros enquadramentos que promovam certas descobertas científicas, como são vários os exemplos, desde a investigação aeronáutica até ao surgimento de tecnologias de informação. Contudo, o processo científico tem um plano teórico que não é despiciendo, que se processa quase num patamar metafísico. Os físicos teóricos conceptualizam num arranjo abstracto de quase alheamento da realidade. O Bosão de Higgs resultou de um modelo meramente teórico elaborado em 1960, resultando na sua comprovação 50 anos depois. O que pretendo afirmar é que existe uma diferença entre a ciência e a sua aplicação, a técnica. À Física Quântica se deve muitas aplicações, entre as quais modernas formas de comunicação, porém aquando da sua conceptualização tal desiderato não estaria a ser pensado. 

Popper num artigo intitulado «A Ciência Normal e seus perigos» acrescenta mais algumas críticas de modo um pouco irónico, chegando a afirmar que o cientista «normal» é alguém de quem devemos ter pena[5] em virtude do seu espírito dogmático e a aversão à novidade. Talvez esta ciência exista nos corredores de universidades, nas consciências de certos cientistas ansiosos por ganhar respeitabilidade e atenção dos seus superiores. Mas a actividade científica é uma constante procura e caracteriza-se por uma incerteza que os modelos e padrões conservadores dificilmente conseguem acompanhar.

3.       O critério falsificacionista de Popper.

Nos antípodas de Kuhn encontramos este pensador austríaco. E a diferença começa logo na forma como Popper elabora a sua epistemologia, procurando aquilo que a ciência deve ser. Numa resposta ao Problema da Indução de Hume, Popper afirma que as teorias científicas devem proceder de um modelo hipotético-dedutivo. O resultado desta ideia será a de que não interessa como se chega à teoria, mas como se sai. Por este motivo, Popper considera mais pertinente designar a teoria de conjectura, querendo promover a ideia da permanente testabilidade da ciência. O seu modelo lógico será, portanto, o Modus Tollens. Consequentemente, uma boa teoria científica será aquela que mais predisposta estará a ser refutada. A importância de uma conjectura não está nas soluções que encontra mas nos problemas que suscita. Popper foi «levado, portanto, por considerações puramente lógicas, a substituir a teoria psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar passivamente que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de modo ativo impor regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e interpretá-las em termos de leis que inventamos. Sem nos determos em premissas, damos um salto para chegar a conclusões - que podemos precisar pôr de lado, caso as observações não as corroborem. »[6] A cada teoria científica corresponde um processo de refutações constantes e o respectivo processo evolutivo, que também é de progressão, desenvolve-se de acordo com o seguinte esquema:

P1 ® TE ® EE ® P2, sendo P1 o problema de partida, TE a teoria experimental, EE significa o processo de eliminação de erros e P2 representa os problemas finais – os que emergem das discussões e ensaios[7]. Resumindo, o esquema mostra-nos que a ciência nasce de problemas e acaba em problemas. Aliás, Popper acrescenta que todo o conhecimento se processa desta forma, seja ele objectivo ou subjectivo, prático ou teórico. Mas perceber como se deve processar a transição entre teorias exige que seja necessário esclarecer o que faz uma teoria melhor do que outra.

O que faz uma teoria melhor do que outra?

O falsificacionismo é o elemento apresentado por Popper como critério de demarcação entre ciência e não ciência. Deste modo, uma teoria será melhor do que a sua oposta se for mais falsificável, adjetivo que se relaciona com o conteúdo empírico, isto é, quanto mais uma teoria disser sobre a realidade (teoria da verdade como correspondência), mais falsificável ela é. Antes de apresentarmos o recurso utilizado por Popper para sustentar esta sua ideia, convém referir a sua definição de ciência. Na obra O Universo Aberto, a ciência é apresentada como uma construção racional cada vez mais adaptada à realidade, de modo figurativo, é como se consistisse numa construção de uma rede em constante adaptação no sentido de alcançar mais realidade. E porque a complexidade pode ser um obstáculo à falsificação, a ciência será uma supersimplificação sistemática da realidade[8]. O que temos em mira é a verdade e cada construção racional corresponde a uma aproximação a essa verdade incógnita, levando-nos a adjectivar as teorias científicas como verosimilhantes. Se recorrermos à testabilidade da conjetura de que «todos os cães têm cauda» e ela resistir-lhe, então podemos afirmar que existe uma proximidade com a realidade de que todos os cães têm cauda apesar de nunca podermos universalizar esta asserção. Significa isto que, caso surja um caso de ausência de cauda, a conjetura é automaticamente abandonada, não havendo espaço para qualquer actualização. A conjectura que a substitui possuirá, pois, um melhor enquadramento racional, «apanhará» mais realidade, será mais simples e, por isso, mais falsificável. A t2 é melhor do que a t1 porque tem assertivas mais precisas, explica mais factos, descreve-os melhor, resistiu a testes, suscita novos problemas e novos testes[9]. Por outras palavras, t2 é mais verosímil do que t1 e, curiosamente, menos provável. Quanto mais verosímil, menos provável a teoria será e mais pertinente se torna. Sem querer entrar na discussão etimológica da palavra verosimilhança, Popper prova a confusão existente entre os termos verosimilhança e probabilidade. Temos que, entre o conteúdo empírico (ce) e a Probabilidade (p), há uma relação de inversão proporcional: quanto maior o ce, menor é a p.


ce(a) <ce(a+b)> ce(b)

p(a) > p(ab) < p(b)

O critério falsificacionista é atrativo. Parece sugerir que a ciência se caracteriza por uma constante testabilidade, o que poderá encontrar exemplos significativos que assim seja. A ciência é instável, necessita de procedimentos elaborados e honestos, implica uma procura constante e uma ausência de satisfação definitiva e plena por haver alguma inovação porque logo a seguir se constrói mecanismos que sujeitam a investigação a um permanente processo crítico. Contudo, é muito comum dizer-se que o «dever ser» que caracteriza a epistemologia de Popper não lhe fornece grande legitimidade prática. Creio até que vai um pouco contra a natureza humana. Inverter a lógica da pesquisa de um processo verificacionista para um modelo falsificacionista obriga a uma inversão total na própria lógica do cientista. Inclusive, há procedimentos históricos que mostram a inadequação do falsificacionismo com a prática quotidiana de ciência. Factualmente, teorias que haviam sido aceites e que, pese embora o surgimento de factos que pareciam ir contra os modelos sugeridos, continuaram a ser aceites. Por exemplo, Nos primeiros anos de sua vida, a teoria gravitacional de Newton foi falsificada por observações da órbita lunar. Levou quase cinquenta anos para que essa falsificação fosse desviada para outras causas que não a teoria de Newton.[10] Se a teoria corpuscular de Newton fosse falsificada pelas observações que levaram à teoria ondulatória, então não seria possível proceder-se à reintegração da teoria corpuscular quando se chegou à conclusão da limitação da teoria ondulatória.

4.       Pode Lakatos resolver a encruzilhada?

Começa Lakatos por afirmar que a filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia; a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega[11]. Esta recuperação da frase de kant relativa ao conhecimento a priori e a posteriori mostra bem ao que Lakatos veio. Da mesma forma que Kant concilia o empirismo e o racionalismo, também Lakatos pretende conciliar Kuhn com Popper, relegando, porém, o relativismo que o repudiava e negando o falsificacionismo. Apesar do autor ter uma especial predilecção por este, rejeita-o como fenómeno preponderante no desenvolvimento científico. As teorias possuem mecanismos próprios de manutenção da progressividade. A história da ciência falseia o falsificacionismo. 

Para Lakatos, os programas de investigação científica possuem partes fundamentais: o núcleo firme da teoria, a heurística negativa e a heurística positiva. A ideia será a de «proibir» a lógica Tollens de Popper ou a anomalia de Kuhn ao âmago da teoria.

O núcleo firme de uma teoria é identificável pelas suas características fundamentais, concretizando melhor, as ideias centrais de Newton assumem-se com a afirmação do espaço e tempos absolutos e as ideias de Einstein de que o espaço e o tempo são relativos. Do mesmo modo, o núcleo irredutível de um programa geocêntrico é a ideia de que os planetas gravitam à volta da terra e do programa heliocêntrico é necessariamente o oposto. Este núcleo é protegido por uma heurística negativa que não é mais que a exigência de que, durante o desenvolvimento do programa, o núcleo irredutível deve permanecer intacto e sem modificações. Quem abandone este núcleo, abandona o modelo. Há muitos exemplos de dissidentes na história da ciência. A heurística positiva é o processo de intervenção da teoria a partir da qual se promove mecanismos de protecção a todo o custo, desenvolvendo técnicas matemáticas e experimentais adequadas[12]. Desde logo, há pontos de contacto com Kuhn. em primeiro lugar, a ênfase dada à história da ciência, apesar das diferenças introduzidas de história interna e externa[13]; a importância que os cientistas dão ao núcleo central da teoria, que Kuhn afirma assemelhar-se à noção de Paradigma .e, finalmente, a predisposição paradigmática de promover formas de adequação das teorias a novas descobertas como pode ser encontrado na heurística positiva.

O processo de substituição de teorias passa pela definição das noções de degenerescência e progresso. O progresso de uma teoria reside na capacidade de prever e descobrir novos fenómenos, é uma atividade proativa da heurística positiva. Quando a força desta se desvanece começa a dar-se mais atenção às anomalias e aos programas de investigação mais progressista. Chalmers[14] dá exemplos da substituição de programas de investigação rivais tendo como pano de fundo as investigações de Faraday e a noção de electricidade como um fluído de partículas que residiam nos corpos carregados electricamente. Todavia, estes exemplos também mostram as lacunas de Lakatos - como também de Kuhn e o correspondente conceito de incomensurabilidade - porque prova que é possível haver compromissos entre programas de investigação rivais ou até complementaridade, como o exemplo da teoria eletromagnética clássica que resultou da reconciliação dos dois programas de onde herdou o «campo» e o «electrão».

Em que ficamos?

A Ciência é o saber por excelência. Complexa, porém simplificadora; verdadeira, porém aproximada; racional, porém enquadrada no seu próprio tempo; objectiva, porém não completamente neutra. Todos estes filósofos tiveram o condão de enobrecerem o conhecimento. Parece-me evidente que em todas as épocas existe um núcleo central, uma matriz, um modelo que promove a dinâmica científica, apesar de muitas vezes só ser perceptível quando é feita a retrospecção. O sucesso de certas teorias também passa por aí, do mesmo modo que a rejeição de tantas outras. O Darwinismo impôs-se mas assistiu a resistências imensas por parte do criacionismo e respectivo ambiente científico. A ciência também é uma lógica de poder. Mas não é conservadora, como Kuhn a intitulou. Kuhn tem a vantagem de alargar o conceito de cientificidade a todas as áreas como é constatável pela capacidade explicativa do conceito central de paradigma. No entanto, Lakatos ganha uns pontos ao distinguir a história interna da história externa. Mas esta distinção não será meramente conceptual? Popper diria que sim. O falsificacionismo não é mais do que uma resposta ao indutivismo, ao problema suscitado por Hume e ao verificacionismo herdado do neopositivismo, mas tem o proveito de recuperar a racionalidade e a objectividade científica. A resposta aos testes ainda é o que define se uma teoria é melhor do que outra. Na pesquisa pura, que diversas vezes é determinada pelas necessidades circunstanciais das sociedades, a testabilidade, o controlo sistemático das variáveis, a manipulação factual e experimental ainda predomina no desenvolvimento científico e serve para o problema da demarcação. Uma boa teoria científica ainda é aquela que melhor define os momentos de investigação e melhor resposta dá aos problemas e a passagem de uma teoria para outra resulta sempre de um processo meticuloso de aplicação e de construção técnica de corroboração ou falsificação, como pode ser exemplificado por todo o aparato técnico do Bosão de Higgs. A grande vantagem do conhecimento científico é a capacidade de perceber como surge, de onde surge e para onde vai. Sabe-se que a ideia de racionalidade pura não existe na ciência. As teorias de Newton tornaram-se na base do mecanicismo que não é inseparável da ideia de ordem e criação divinas[15]. Kuhn e Lakatos tiveram o mérito de dar ênfase ao carácter comunicacional, persuasivo e argumentativo do compromisso científico, apesar do primeiro ter caído num excessivo relativismo. Esta consciência epistémica fornece à filosofia um papel de primordial utilidade na construção quase racional da ciência.

António Daniel Fernandes Pereira da Costa.



[1] Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, 5ª edição, Trad Beatriz Boeira, Nelson Boeira, Editora Perspectiva, S. Paulo, 1962.

[2] Ibidem, p.43.

[3] Ibidem, p. 77 e ss.

[4] Thomas Kuhn, A Tensão Essencial, trad. Rui Pacheco, Ed 70, Viseu, 1989, p. 388.

[5] AAVV, A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, cultrix, S. Paulo, 1979, p 67.

[6] Karl Popper, Conjecturas e Refutações, Brasília, Editora da UnB. 1980, p. 14

[7] Karl Popper, O Conhecimento e o Problema da Mente, trad Joaquim Gomes, Ed70, Lisboa, 1997, p. 23.

[8] Karl Popper, O Universo Aberto, Nuno Fonseca, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1988, p. 59.

[9] Karl Popper, Conjeturas e Refutações, p. 258

[10] A F Chalmers, O que é a Ciência Afinal?, trad, David Filker, editora Brasiliense, 1993, p. 98.

[11] I. Lakatos, Historia de la Ciencia, trad. Diego Nicolás, Editoril Tecnos, 1987, p. 11.

[12] A. F. Chalmers, op cit, p. 160.

[13] A este propósito diga-se que a história interna diz respeito à realidade científica em si, às atividades profissionais dos seus membros e a história externa analisa o contexto civilizacional ou cultural que envolve o processo científico. Esta distinção, que Kuhn apelida de artificial, visava salvaguardar o plano do rigor científico dos fenómenos extracientíficos.

[14] A. F. Chalmers, Op cit, p. 123 e ss.

[15] John Gray, Sobre Humanos e Outros Animais, Trad. Miguel S. Pereira, Lua de Papel, 2008, p. 33