I Introdução
Até há bem pouco
tempo a Física mantinha o seu umbilical cordão com a Filosofia, pelo menos em
termos de designação. A Filosofia Natural pressupunha essa natureza convergente
do conhecimento, o seu carácter aglutinador e total. Contudo, depressa a ciência
dita natural se distanciou, granjeando atenções, legítimas, diga-se, e se
autopromoveu como conhecimento por excelência, permitindo o surgimento de
espaços para as ciências sociais e humanas, eufemismos e apeadeiros
confortáveis para a consciência dos académicos. Perante este cenário, qual o
papel da filosofia? Num recente número de uma revista norte-americana,
Scientific Americain (https://www.scientificamerican.com/)
foi publicado um artigo da autoria de Carlo Rovelli (https://www.publico.pt/2019/11/23/ciencia/entrevista/carlo-rovelli-compreender-curvatura-espaco-tempo-quase-trip-psicadelica-1894617)
cuja leitura nos remete para uma necessária simbiose entre Filosofia e Física,
«Philosophy needs Physic, and Physic needs Philosophy». O autor, depois de uma
breve incursão à filosofia grega, sugere-nos a dependência entre a Física e a
Filosofia a partir dos primórdios da Física Quântica, afirmando que os
filósofos habitualmente possuem ferramentas e habilidades (Skills) que a Física
necessita e que os Físicos habitualmente não exercitam: análise conceptual,
habilidade em encontrar algumas lacunas nos argumentos e procurar explicações
conceptuais alternativas. Creio que o caminho poderá ser por aí para não se
enfatizar os últimos desdéns votados à filosofia por Steven Weinberg, Stephen
Hawking, entre outros.
Uma das clarificações
e análises que o rigor filosófico pode e deve estar atento é no que diz respeito à
escolha das teorias científicas, que Kuhn, Lakatos e Popper tiveram a
oportunidade de desenvolver. Depois da apresentação das suas ideias, procurarei
pontos de confronto e/ou convergência para, finalmente, encontrar um «porto de
abrigo» que irá ao encontro da ideia de que a escolha ainda é sugerida por
momentos de predominância de uma cientificidade, objectividade e racionalidade,
apesar de reconhecer que esta última característica não possui a mesma
conotação iluminista de universalidade.
2.
A luta Paradigmática e a resolução de Enigmas.
Na sua Obra A Estrutura das Revoluções Científicas[1],
Kuhn diz ao que vem. Encetou um programa de construção histórica da ciência, um
dos caminhos possíveis para alterar o modo como a ciência e os próprios
cientistas se veem a si mesmos. Do percurso histórico, Kuhn vislumbrou a caraterística
fundamental da ciência como processo de resolução de enigmas. Quando nos
sujeitamos a resolver um enigma sabemos de antemão que tem solução. O mesmo
acontece com a ciência. Perante um facto que surge no horizonte da explicação
científica, considera-se que o peso heurístico do paradigma dominante bastará
para assegurar a concretização do processo de investigação. No capítulo II da
obra supracitada[2], são
sugeridos os três focos para a investigação científica normal, que passa pela determinação
do facto científico, dos casos significativos num determinado âmbito
paradigmático e respectiva articulação da teoria, garantindo o rigor e a
precisão. São estes os motivos que fazem da Ciência Normal, conceito primordial
da epistemologia de Kuhn, um exercício conservador para a manutenção a todo o
custo do Paradigma que a sustenta. Tal pode ser provado na receptividade que as
teorias evolucionistas de Darwin tiveram na academia londrina. Os períodos da
Ciência Normal – que consistem na institucionalização do Paradigma – regem-se
pela ideia de que partimos sempre com a expectativa de resolução de um qualquer
facto. Por esse motivo, a Ciência Normal testa a engenhosidade dos cientistas,
determina as leis, conceitos e teorias e os Instrumentos e métodos de uso. Contudo,
uma questão pode surgir, o que acontece quando surge um qualquer problema que
não seja imediatamente explicado pelo paradigma dominante?
A palavra
descoberta sugere que houve um momento único e uma única pessoa que a processou.
Ora, Kuhn diz que a descoberta é um processo moroso. A descoberta oxigénio[3]
tanto se ficou a dever a Priestley como a Lavoisier ou até a todos aqueles que
contribuíram para a descoberta. Além disso, a própria constatação da existência
de oxigénio não foi rapidamente aceite. Durante o séc. XVIII havia a ideia
paradigmática de que todas as substâncias que se queimam têm um elemento comum:
o flogisto. Foi somente com Lavoisier que se concluiu que o fenómeno da
combustão deveria ser interpretado ao contrário do que ensinava a teoria
flogística: em lugar de perder flogisto, elemento imaginário que não
deveria existir, os corpos quando se queimam, ou se oxidam, absorvem oxigénio.
A persistência da anomalia e a sua inconveniente presença, tornam a crise
paradigmática em algo presente e incómoda. Como explicar as constatações
darwinianas dos tentilhões à luz do criacionismo? De que modo refutar a
observações de galilaicas de Vénus e de todo o movimento científico seu
contemporâneo tendo como pano de fundo o geocentrismo? Num enquadramento
diacrónico, é-nos fácil ridicularizar a tendências daqueles que não aceitam de
imediato as novas constatações, mas Kuhn mostra que o abandono de um Paradigma
é moroso e exige que um novo Paradigma possa surgir no horizonte. Aqui uma
pergunta se impõe: que características deve o Paradigma emergente possuir para
que seja aceite?
É comum
aferirmos a ciência como uma actividade objectiva, considerando-a livre de
qualquer influência valorativa ou subjectiva. Porém, para Kuhn «quando os cientistas têm de escolher entre
teorias rivais, dois homens comprometidos completamente com a mesma lista de
critérios para escolha podem, contudo, chegar a conclusões diferentes.»[4]. Tal
constatação sugere que existem outros critérios para além da objetividade, como
o critério da exactidão, da consistência, do longo alcance, da simplicidade, da
fecundidade. Acrescente-se a ideia de Kuhn segundo a qual o surgimento de uma
nova teoria tipicamente só surge após um fracasso na actividade normal de
resolução de problemas. Uma teoria ser admiravelmente
bem sucedida não significa ser totalmente bem sucedida. Existem factores
internos, como a insegurança dos cientistas, o fracasso do paradigma em
resolver os seus próprios problemas e factores externos que passam pelas pressões
socioculturais e religiosas, que levam a supor que o surgimento de uma nova
teoria necessita de larga aceitabilidade da comunidade científica que, por sua
vez, não é totalmente neutra ao seu contexto sócio-cultural.
A crise do
paradigma, a aplicação da ciência extraordinária como forma de resposta à
persistente anomalia pode originar a revolução científica que, tal como o nome
indica, promove uma mudança radical no espectro científico, evidenciando a
característica de incomensurabilidade paradigmática. Que significa dizer que os
paradigmas são incomensuráveis? Que os defensores de um e outro estão em
conflito sobre os próprios problemas que se trata de solucionar, assim como
sobre as soluções aceitáveis e que diferentes paradigmas possuem diferentes
usos de noções e conceitos.
A tese de Kuhn relativamente às escolhas das
teorias é de difícil refutação. O seu quadro teórico baseia-se em pressupostos
históricos como se constata nos inúmeros exemplos apresentados nas suas obras.
A partir daí elabora o conceito de paradigma que está esboçado de tal forma que
possui múltiplas caracterizações, desde matriz lógica, até metafísica, passando
por pressupostos sociológicos e axiológicos. De tão englobante conceito facilmente
pode cair em algo indefinível. Contudo, há considerações pertinentes em Kuhn.
Sabemos que durante o século XIX a ideia premente transversal a todo o saber
era a ideia de evolução e também de progresso. Na ciência, quase em simultâneo
com o Darwinismo, surgiu a ideia de evolução de Spencer, Haeckel e outros. Do
mesmo modo, na filosofia desde o idealismo alemão assim como no positivismo de
Comte e Litré, o pressuposto de evolução e progresso estão presentes. De igual forma,
podemos asseverar que o contexto e necessidades tecnológicas promoveram a
Relatividade de Einstein. Parece, assim, indesmentível que há um ambiente que
ajuda a promover uma ideia de ciência, de saber, de conhecimento e que os forma
de modo indelével. Contudo, perguntar-se-á se tal legitima a ideia de
relativismo e se os critérios de escolha das teorias são de facto tão
«sociológicos» e até psicológicos. Kuhn parece pressupor que mais importante
que as demonstrações de pureza técnica é a capacidade persuasiva dos cientistas.
Parece evidente que a substituição de uma perspetiva geocêntrica por uma
heliocêntrica em pleno século XVI teve de muito sociológico. As teorias quando
surgem são facilmente dominadas por interesses vários que as adotam. Do mesmo
modo, a resistência da ciência do século XIX relativamente às ideias
evolucionistas pode ser facilmente identificada na assunção religiosa
dominante. Atualmente proceder-se-á deste modo? Penso que não. Podem surgir
contextos económicos e outros enquadramentos que promovam certas descobertas
científicas, como são vários os exemplos, desde a investigação aeronáutica até
ao surgimento de tecnologias de informação. Contudo, o processo científico tem
um plano teórico que não é despiciendo, que se processa quase num patamar metafísico. Os físicos teóricos conceptualizam
num arranjo abstracto de quase alheamento da realidade. O Bosão de Higgs
resultou de um modelo meramente teórico elaborado em 1960, resultando na sua
comprovação 50 anos depois. O que pretendo afirmar é que existe uma diferença
entre a ciência e a sua aplicação, a técnica. À Física Quântica se deve muitas
aplicações, entre as quais modernas formas de comunicação, porém aquando da sua
conceptualização tal desiderato não estaria a ser pensado.
Popper num
artigo intitulado «A Ciência Normal e seus perigos» acrescenta mais algumas
críticas de modo um pouco irónico, chegando a afirmar que o cientista «normal»
é alguém de quem devemos ter pena[5]
em virtude do seu espírito dogmático e a aversão à novidade. Talvez esta
ciência exista nos corredores de universidades, nas consciências de certos
cientistas ansiosos por ganhar respeitabilidade e atenção dos seus superiores.
Mas a actividade científica é uma constante procura e caracteriza-se por uma
incerteza que os modelos e padrões conservadores dificilmente conseguem
acompanhar.
3.
O critério falsificacionista de Popper.
Nos antípodas de
Kuhn encontramos este pensador austríaco. E a diferença começa logo na forma
como Popper elabora a sua epistemologia, procurando aquilo que a ciência deve
ser. Numa resposta ao Problema da Indução de Hume, Popper afirma que as teorias
científicas devem proceder de um modelo hipotético-dedutivo. O resultado desta
ideia será a de que não interessa como se chega à teoria, mas como se sai. Por
este motivo, Popper considera mais pertinente designar a teoria de conjectura,
querendo promover a ideia da permanente testabilidade da ciência. O seu modelo
lógico será, portanto, o Modus Tollens. Consequentemente, uma boa teoria
científica será aquela que mais predisposta estará a ser refutada. A
importância de uma conjectura não está nas soluções que encontra mas nos problemas
que suscita. Popper foi «levado,
portanto, por considerações puramente lógicas, a substituir a teoria
psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar
passivamente que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de
modo ativo impor regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e
interpretá-las em termos de leis que inventamos. Sem nos determos em premissas,
damos um salto para chegar a conclusões - que podemos precisar pôr de lado,
caso as observações não as corroborem. »[6] A
cada teoria científica corresponde um processo de refutações constantes e o
respectivo processo evolutivo, que também é de progressão, desenvolve-se de
acordo com o seguinte esquema:
P1 ® TE ® EE ® P2, sendo P1 o problema
de partida, TE a teoria experimental, EE significa o processo de eliminação de
erros e P2 representa os problemas finais – os
que emergem das discussões e ensaios[7].
Resumindo, o esquema mostra-nos que a ciência nasce de problemas e acaba em
problemas. Aliás, Popper acrescenta que todo o conhecimento se processa desta
forma, seja ele objectivo ou subjectivo, prático ou teórico. Mas perceber como
se deve processar a transição entre teorias exige que seja necessário
esclarecer o que faz uma teoria melhor do que outra.
O que faz uma
teoria melhor do que outra?
O
falsificacionismo é o elemento apresentado por Popper como critério de
demarcação entre ciência e não ciência. Deste modo, uma teoria será melhor do
que a sua oposta se for mais falsificável, adjetivo que se relaciona com o
conteúdo empírico, isto é, quanto mais uma teoria disser sobre a realidade
(teoria da verdade como correspondência), mais falsificável ela é. Antes de
apresentarmos o recurso utilizado por Popper para sustentar esta sua ideia,
convém referir a sua definição de ciência. Na obra O Universo Aberto, a
ciência é apresentada como uma construção racional cada vez mais adaptada à
realidade, de modo figurativo, é como se consistisse numa construção de uma
rede em constante adaptação no sentido de alcançar mais realidade. E porque a
complexidade pode ser um obstáculo à falsificação, a ciência será uma
supersimplificação sistemática da realidade[8].
O que temos em mira é a verdade e cada construção racional corresponde a uma
aproximação a essa verdade incógnita, levando-nos a adjectivar as teorias
científicas como verosimilhantes. Se recorrermos à testabilidade da conjetura
de que «todos os cães têm cauda» e ela resistir-lhe, então podemos afirmar que
existe uma proximidade com a realidade de que todos os cães têm cauda apesar de
nunca podermos universalizar esta asserção. Significa isto que, caso surja um
caso de ausência de cauda, a conjetura é automaticamente abandonada, não
havendo espaço para qualquer actualização.
A conjectura que a substitui possuirá, pois, um melhor enquadramento racional,
«apanhará» mais realidade, será mais simples e, por isso, mais falsificável. A
t2 é melhor do que a t1 porque tem assertivas mais precisas, explica mais
factos, descreve-os melhor, resistiu a testes, suscita novos problemas e novos
testes[9].
Por outras palavras, t2 é mais verosímil do que t1 e, curiosamente, menos
provável. Quanto mais verosímil, menos provável a teoria será e mais pertinente
se torna. Sem querer entrar na discussão etimológica da palavra verosimilhança,
Popper prova a confusão existente entre os termos verosimilhança e
probabilidade. Temos que, entre o conteúdo empírico (ce) e a Probabilidade (p),
há uma relação de inversão proporcional: quanto maior o ce, menor é a p.
ce(a) <ce(a+b)> ce(b)
p(a)
> p(ab) < p(b)
O critério
falsificacionista é atrativo. Parece sugerir que a ciência se caracteriza por
uma constante testabilidade, o que poderá encontrar exemplos significativos que
assim seja. A ciência é instável, necessita de procedimentos elaborados e
honestos, implica uma procura constante e uma ausência de satisfação definitiva
e plena por haver alguma inovação porque logo a seguir se constrói mecanismos
que sujeitam a investigação a um permanente processo crítico. Contudo, é muito
comum dizer-se que o «dever ser» que caracteriza a epistemologia de Popper não
lhe fornece grande legitimidade prática. Creio até que vai um pouco contra a
natureza humana. Inverter a lógica da pesquisa de um processo verificacionista
para um modelo falsificacionista obriga a uma inversão total na própria lógica
do cientista. Inclusive, há procedimentos históricos que mostram a inadequação
do falsificacionismo com a prática quotidiana de ciência. Factualmente, teorias
que haviam sido aceites e que, pese embora o surgimento de factos que pareciam
ir contra os modelos sugeridos, continuaram a ser aceites. Por exemplo, Nos primeiros anos de sua
vida, a teoria gravitacional de Newton foi falsificada por observações da
órbita lunar. Levou quase cinquenta anos para que essa falsificação fosse
desviada para outras causas que não a teoria de Newton.[10]
Se a teoria corpuscular de Newton fosse falsificada pelas observações que
levaram à teoria ondulatória, então não seria possível proceder-se à
reintegração da teoria corpuscular quando se chegou à conclusão da limitação da
teoria ondulatória.
4. Pode
Lakatos resolver a encruzilhada?
Começa
Lakatos por afirmar que a filosofia da
ciência sem a história da ciência é vazia; a história da ciência sem a
filosofia da ciência é cega[11].
Esta recuperação da frase de kant relativa ao conhecimento a priori e a posteriori
mostra bem ao que Lakatos veio. Da mesma forma que Kant concilia o empirismo e
o racionalismo, também Lakatos pretende conciliar Kuhn com Popper, relegando,
porém, o relativismo que o repudiava e negando o falsificacionismo. Apesar do
autor ter uma especial predilecção por este, rejeita-o como fenómeno
preponderante no desenvolvimento científico. As teorias possuem mecanismos
próprios de manutenção da progressividade. A história da ciência falseia o
falsificacionismo.
Para Lakatos, os
programas de investigação científica possuem partes fundamentais: o núcleo
firme da teoria, a heurística negativa e a heurística positiva. A ideia será a
de «proibir» a lógica Tollens de Popper ou a anomalia de Kuhn ao âmago da
teoria.
O núcleo firme
de uma teoria é identificável pelas suas características fundamentais,
concretizando melhor, as ideias centrais de Newton assumem-se com a afirmação
do espaço e tempos absolutos e as ideias de Einstein de que o espaço e o tempo
são relativos. Do mesmo modo, o núcleo irredutível de um programa geocêntrico é
a ideia de que os planetas gravitam à volta da terra e do programa
heliocêntrico é necessariamente o oposto. Este núcleo é protegido por uma
heurística negativa que não é mais que a exigência de que, durante
o desenvolvimento do programa, o núcleo irredutível deve permanecer intacto e
sem modificações. Quem abandone este núcleo, abandona o modelo. Há muitos
exemplos de dissidentes na história da ciência. A heurística positiva é o
processo de intervenção da teoria a partir da qual se promove mecanismos de
protecção a todo o custo, desenvolvendo técnicas matemáticas e experimentais
adequadas[12]. Desde
logo, há pontos de contacto com Kuhn. em primeiro lugar, a ênfase dada à
história da ciência, apesar das diferenças introduzidas de história interna e
externa[13];
a importância que os cientistas dão ao núcleo central da teoria, que Kuhn
afirma assemelhar-se à noção de Paradigma .e,
finalmente, a predisposição paradigmática de promover formas de adequação das
teorias a novas descobertas como pode ser encontrado na heurística positiva.
O
processo de substituição de teorias passa pela definição das noções de
degenerescência e progresso. O progresso de uma teoria reside na capacidade de
prever e descobrir novos fenómenos, é uma atividade proativa da heurística
positiva. Quando a força desta se desvanece começa a dar-se mais atenção às
anomalias e aos programas de investigação mais progressista. Chalmers[14]
dá exemplos da substituição de programas de investigação rivais tendo como pano
de fundo as investigações de Faraday e a noção de electricidade como um fluído
de partículas que residiam nos corpos carregados electricamente. Todavia, estes
exemplos também mostram as lacunas de Lakatos - como também de Kuhn e o
correspondente conceito de incomensurabilidade - porque prova que é possível
haver compromissos entre programas de investigação rivais ou até
complementaridade, como o exemplo da teoria eletromagnética clássica que
resultou da reconciliação dos dois programas de onde herdou o «campo» e o
«electrão».
Em
que ficamos?
A Ciência é o saber por excelência. Complexa, porém simplificadora; verdadeira, porém aproximada; racional, porém enquadrada no seu próprio tempo; objectiva, porém não completamente neutra. Todos estes filósofos tiveram o condão de enobrecerem o conhecimento. Parece-me evidente que em todas as épocas existe um núcleo central, uma matriz, um modelo que promove a dinâmica científica, apesar de muitas vezes só ser perceptível quando é feita a retrospecção. O sucesso de certas teorias também passa por aí, do mesmo modo que a rejeição de tantas outras. O Darwinismo impôs-se mas assistiu a resistências imensas por parte do criacionismo e respectivo ambiente científico. A ciência também é uma lógica de poder. Mas não é conservadora, como Kuhn a intitulou. Kuhn tem a vantagem de alargar o conceito de cientificidade a todas as áreas como é constatável pela capacidade explicativa do conceito central de paradigma. No entanto, Lakatos ganha uns pontos ao distinguir a história interna da história externa. Mas esta distinção não será meramente conceptual? Popper diria que sim. O falsificacionismo não é mais do que uma resposta ao indutivismo, ao problema suscitado por Hume e ao verificacionismo herdado do neopositivismo, mas tem o proveito de recuperar a racionalidade e a objectividade científica. A resposta aos testes ainda é o que define se uma teoria é melhor do que outra. Na pesquisa pura, que diversas vezes é determinada pelas necessidades circunstanciais das sociedades, a testabilidade, o controlo sistemático das variáveis, a manipulação factual e experimental ainda predomina no desenvolvimento científico e serve para o problema da demarcação. Uma boa teoria científica ainda é aquela que melhor define os momentos de investigação e melhor resposta dá aos problemas e a passagem de uma teoria para outra resulta sempre de um processo meticuloso de aplicação e de construção técnica de corroboração ou falsificação, como pode ser exemplificado por todo o aparato técnico do Bosão de Higgs. A grande vantagem do conhecimento científico é a capacidade de perceber como surge, de onde surge e para onde vai. Sabe-se que a ideia de racionalidade pura não existe na ciência. As teorias de Newton tornaram-se na base do mecanicismo que não é inseparável da ideia de ordem e criação divinas[15]. Kuhn e Lakatos tiveram o mérito de dar ênfase ao carácter comunicacional, persuasivo e argumentativo do compromisso científico, apesar do primeiro ter caído num excessivo relativismo. Esta consciência epistémica fornece à filosofia um papel de primordial utilidade na construção quase racional da ciência.
António Daniel
Fernandes Pereira da Costa.
[1] Thomas
Kuhn, A Estrutura das Revoluções
Científicas, 5ª edição, Trad Beatriz Boeira, Nelson Boeira, Editora
Perspectiva, S. Paulo, 1962.
[2] Ibidem, p.43.
[3] Ibidem, p. 77 e ss.
[4] Thomas
Kuhn, A Tensão Essencial, trad. Rui
Pacheco, Ed 70, Viseu, 1989, p. 388.
[5] AAVV, A
Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, cultrix, S. Paulo, 1979, p 67.
[6] Karl
Popper, Conjecturas e Refutações,
Brasília, Editora da UnB. 1980, p. 14
[7] Karl
Popper, O Conhecimento e o Problema da
Mente, trad Joaquim Gomes, Ed70, Lisboa, 1997, p. 23.
[8] Karl
Popper, O Universo Aberto, Nuno
Fonseca, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1988, p. 59.
[9] Karl
Popper, Conjeturas e Refutações, p.
258
[10] A F
Chalmers, O que é a Ciência Afinal?,
trad, David Filker, editora Brasiliense, 1993, p. 98.
[11] I.
Lakatos, Historia de la Ciencia,
trad. Diego Nicolás, Editoril Tecnos, 1987, p. 11.
[12] A. F.
Chalmers, op cit, p. 160.
[13]
A este propósito diga-se que a história interna diz respeito à realidade
científica em si, às atividades profissionais dos seus membros e a história
externa analisa o contexto civilizacional ou cultural que envolve o processo
científico. Esta distinção, que Kuhn apelida de artificial, visava salvaguardar
o plano do rigor científico dos fenómenos extracientíficos.
[14] A. F.
Chalmers, Op cit, p. 123 e ss.
[15] John
Gray, Sobre Humanos e Outros Animais, Trad. Miguel S. Pereira, Lua de Papel,
2008, p. 33